Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013
Folha Lei de mercado
Folha de São Paulo - 21/06/2006
"Lei de mercado" leva igrejas à Justiça
Dizendo-se lesadas, pessoas que confiaram em promessas divinas pedem indenizações por danos morais e materiais
Para sociólogos, revolta ilustra mudança na relação com a religião, que presta serviços e é pautada pelo dinheiro de contribuintes
João Carlos Magalhães e Matheus Pichonelli
As neopentecostais adotam a chamada Teologia da Prosperidade: prometem a quem provar sua fé --pagando dízimo-- cura, dinheiro, amor e outros prêmios
Eles depositaram fé, confiança e dinheiro em quem lhes prometeu prosperidade e dias melhores. Até que um dia, cansados de esperar pela providência divina, resolveram pedir o dinheiro de volta.
Não são consumidores lesados, mas fiéis desapontados que, dizendo-se enganados por líderes religiosos, tomaram o caminho da Justiça para cobrar das igrejas indenizações por danos morais e materiais.
Nas estantes de fóruns e do Tribunal de Justiça de São Paulo, casos de pessoas que investiram dinheiro em promessas _desde a celebração de um casamento até o enriquecimento imediato_ esperam agora da lei dos homens uma sentença final _ao menos nesta vida (leia os casos ao lado).
As histórias de Maria e de Carlos Marcelo, ex-freqüentadores da Igreja Universal do Reino de Deus, ilustram essa situação. Eles reclamam na Justiça terem vendido bens, como apartamentos e carros, em troca de uma prosperidade financeira que não foi alcançada, de um milagre que não ocorreu. Nas audiências, representantes das igrejas dizem que são mediadores da vontade divina e que não se comprometeram a cumprir as promessas feitas em nome de Deus. A moeda de troca, conforme argumentam, é algo imensurável: a fé. Do outro lado, antigos fiéis afirmam que foram enganados, levados ao erro e até extorquidos.
"Fui até a igreja querendo dias melhores e tudo que me deram foi uma porrada no nariz", conta, revoltado, o padeiro desempregado José Bezerra Leite. Ele diz ter participado de uma sessão de descarrego na Universal, na qual o auxiliar de um pastor, ao tentar exorcizá-lo, bateu sua cabeça no banco. O saldo da frustração é cobrado na Justiça: R$ 5.000.
Há também a história de um católico que pagou R$ 1.500 para casar na tradicional paróquia Nossa Senhora do Brasil, em São Paulo. Ele pediu o cancelamento do evento, pois o padre interferia nos preparativos. O pároco se negou a devolver o dinheiro, e o caso foi à Justiça. O fiel parou de contribuir com a paróquia e agora reza em uma igreja ortodoxa, onde se casou.
Regras contra abusos
De acordo com o sociólogo e professor da USP Antônio Flávio Pierucci, o fato de os fiéis irem à Justiça reclamar seus direitos indica uma pressão para que sejam criadas regras que os protejam de abusos.
"Da mesma forma que um dia os consumidores se mobilizaram para que seus direitos fossem garantidos por lei, existe um movimento para que o fiel deixe de ser vítima de humilhações e para que a lei valha também para o pastor ou o cardeal", avalia. "As igrejas no Brasil possuem privilégios enormes, até mesmo fiscais, que criam terreno para arbitrariedades. A pessoa é livre para entrar, mas depois, pressionada e ameaçada, não consegue sair."
O sociólogo Edin Sued Abumanssur, do departamento de teologia e ciências da religião da PUC-SP, considera que a disputa jurídica é conseqüência do processo de mercantilização da fé, na qual a relação entre igrejas e fiéis tende a ser mediada por dinheiro.
"A religião hoje é um produto pelo qual a pessoa paga, mesmo que seja simbólico. Se não, ela processa. É a lei do mercado, uma tendência em todas as igrejas", analisa Abumanssur.
Na avaliação de Pierucci, a frustração é mais forte para quem foi atraído por promessas e convertido a uma nova religião. "As pessoas chegam nessas novas igrejas com uma enorme expectativa de prosperidade instantânea", diz.
Abumanssur diz ainda que a Igreja Católica, com a renovação carismática, mostra que também está atenta ao que o leigo quer. "Por ser uma relação mais mercantil, os fiéis agem racionalmente, como qualquer consumidor."
Na opinião de Antônio Evangelista de Souza, advogado de Maria _que processa a Universal_ queixas na Justiça por questões religiosas tendem a ficar mais comuns. Para ele, a liberdade de culto, garantida pela Constituição, não pode blindar a igreja que promete ao fiel algo que não pode cumprir. "É um contrato manipulado."
Num tempo em que cartas psicografadas são aceitas como documento da defesa, como ocorreu em maio deste ano em um tribunal do Rio Grande do Sul, muitas igrejas ainda não aceitam sentar no banco dos réus e questionam a legitimidade do juiz para decidir sobre algo metafísico. Algumas chegam a citar longas passagens bíblicas para justificar suas atitudes.
Para o advogado da Congregação Cristã no Brasil Paulo Sanches Campoi, a liberdade de organização e doutrina das igrejas não pode ser analisada por uma lei humana.
"O juiz é uma autoridade estatal que não fez curso de teologia para decidir sobre a fé, algo íntimo que se insere na liberdade de se expressar religiosamente. Muitos morreram na fogueira por essa liberdade."
De acordo com o advogado Adriano Ferriani, professor da PUC-SP e especialista em responsabilidade civil, não existe no Brasil uma lei que defina a relação entre fiel e igreja como um contrato a ser cumprido. Por isso, explica, é comum que os magistrados julguem como improcedentes ações movidas por fiéis desapontados. "Como não se trata de um contrato, deve-se provar que houve dano, culpa e nexo causal entre prometer e cumprir. É muito difícil provar que o fiel é muito ingênuo e foi induzido àquele erro. Fé e boa vontade são coisas que não podem ser mensuradas."