Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013
crossan texto da palestraparte II
Galiléia e o Reino de Deus
Minha perspectiva é que Antipas construiu uma capital nova em 19 E.C., chamou a cidade de Tiberíades, e a colocou às margens do lago porque ele estava trabalhando na sua segunda tentativa para se tornar o Rei dos judeus, comercializando o lago e aumentando assim, em larga escala, sua base tributária dele. Talvez então, ele pensou, o novo imperador Tibério ficaria impressionado o bastante para conceder o que o antigo imperador Augusto havia negado. É precisamente então que duas visões alternativas do Reino de Deus em lugar do reino de Roma foram proclamadas contra ele, uma por João e outra por Jesus.
Considerem, à guisa de introdução, estes dois textos abaixo, um de João e outro de Jesus, e imaginem como estas duas acusações poderiam ter descarrilado a esperança de Antipas em relação a uma aliança matrimonial Herodiana-Asmonéia popularmente aplaudida.Primeiro, em Marcos 6,18, João, o Batista "disse a Herodes, 'não te é lícito possuir a esposa de seu irmão'". E depois, em Marcos 10,11-12, anunciou Jesus que, "Todo aquele que repudiar a sua mulher e desposar outra, comete adultério contra a primeira; e se essa repudiar o seu marido e desposar outro, comete adultério." Crítica ao matrimônio dele por dois profetas populares não era exatamente o que Antipas tinha em mente em seus planos.
João e Jesus
Reino de Deus iminente ou presente?
Escatologia apocalíptica. A palavra escatologia (do grego ?eschaton? ou ?últimas coisas?) é um termo nos ambientes de estudos bíblicos que se refere à visão de Deus para uma terra ideal, para a idéia de como o mundo seria se o governo fosse diretamente do próprio Deus (nós poderíamos perguntar hoje: como seria uma economia divina?). O ?eschaton? denota aqui o ?Reino de Deus?, mas aqui na terra - e não depois e no céu. Então, escatologia não trata da destruição da terra, mas sobre sua transfiguração, não é sobre o fim do mundo, mas sobre o fim do mal, da injustiça, da violência - e do imperialismo. Pense no ?eschaton? como a ?Grande Faxina /ordenamento Divino? do Mundo.
A palavra ?apocalipse? significa uma revelação (de ?apokalypsis? grego ou latim ?revelatio?). Então, escatologia apocalíptica significa alguma revelação especial sobre a Grande Faxina / Ordenamento de Deus do Mundo. E, naquele primeiro século, seu conteúdo normalmente era sobre sua iminência, sobre como logo aconteceria, sobre se aconteceria na contemporaneidade.
É bastante infeliz que a expressão ?Reino do Céu? tenha entrado no vocabulário cristão. No Segundo Testamento essa expressão é usada mais de 30 vezes, mas só por Mateus, enquanto Reino de Deus é duas vezes mais freqüentemente usado e em muitos escritos: Marcos, Lucas, João, Atos e Cartas de Paulo. Além disso, o próprio Mateus também usa Reino de Deus aproximadamente cinco vezes. Este ?Reino do céu?- em grego, de fato, seria Reino dos Céus - é por demais mal interpretado como o Reino do futuro, do próximo mundo, da vida após a morte. Mas, para Mateus, ?céu? era simplesmente um eufemismo para Deus, do mesmo jeito que às vezes a palavra ?casa? é usada para ?morador?, como nós costumamos falar: "a Casa Branca diz", quando queremos dizer "o Presidente diz". Em outras palavras, Reino de Céu significava exatamente o mesmo como ?Reino de Deus?. Mas o que foi isso?
O Reino de Deus era uma expressão normalmente utilizada para o que eu chamo a ?Grande Faxina /Ordenamento Divino? deste mundo. Era o que este mundo seria se e quando Deus se sentasse no trono de César ou se e quando Deus morasse no palácio de Antipas.Isso está muito claro nestas frases paralelas da Oração do Pai Nosso em Mateus 6,10: "Venha o Teu Reino, seja feita Tua vontade, na terra como no céu." O Reino de Deus é sobre a Vontade de Deus para esta terra aqui em baixo.E aquela presença terrestre combina, naturalmente, com tudo o que vimos até agora em termos de expectativa da escatologia apocalíptica. É sobre a transformação deste mundo em santidade e não sobre a evacuação deste mundo para o céu.
Espero que esteja claro que o Reino de Deus é 100% político e 100% religioso, completa e infalivelmente interligado ao mesmo tempo. Reino é um termo político, Deus é um termo religioso, e Jesus seria executado por causa do "de", em um mundo onde, para Roma, Deus se sentou já no trono de César porque César era Deus. Uma vez um colega me contou que a diferença entre nós era que eu considerava o Cristianismo das origens como um movimento político com implicações religiosas enquanto ele o considerava como um movimento religioso com implicações políticas. Eu respondi que, ao contrário, minha posição era que o Cristianismo das origens era absolutamente ambas as coisas ao mesmo tempo porque ninguém no primeiro século fazia tal distinção - lembrem-se das moedas de César, onde estava dito que ele era DIVI F, quer dizer, DIVI FILIUS ou FILHO DE DEUS. Como alguém poderia distinguir política e religião neste título? Para Jesus, o "Reino de Deus" levantou uma pergunta político-religiosa ou religiosa-política: A quem pertence o mundo e como, então, deveria ser governado?
João e a escatologia. João era um escatologista que proclamou a chegada iminente do Deus vingador. Mais dia menos dia, mas certamente muito breve, Deus viria purificar e justificar uma terra que ficou velha em impureza e injustiça. A teoria de João estava perto da teologia Deuteronomística, conforme já desenvolvido na Parte II deste artigo. Naquela compreensão, a opressão pelo poder romano era um castigo por causa dos pecados de Israel, e aquela realidade pecaminosa estava impedindo o advento prometido de Deus. Então, o que era preciso era um grande sinal de arrependimento, uma repetição popular da experiência do Israel antigo, saindo do deserto, cruzando o Jordão e entrando na terra prometida. E naquele processo eles/as se arrependeriam dos seus pecados à medida que eram "batizados/as" ou imergiam no Jordão, sua limpeza moral sendo simbolizada pela limpeza física.
Uma multidão crítica de pessoas arrependidas que tinha "retomado" a sua terra prometida prepararia pelo menos ou possivelmente até mesmo aceleraria o inicio da "Grande Faxina de Deus". Enquanto isso, claro, e não importa o quanto não-violento isso era teoricamente, João estava armando bombas-relógio de expectativa escatológica por toda a parte da pátria judia. Por isso, Antipas o executou. Note um aspecto muito importante daquela ação. Se Antipas considerasse João uma ameaça violenta, ele também teria cercado o máximo de seguidores dele. Executando somente João, Antipas estava respondendo a alguém que se opôs ao sistema romano, mas o fez não-violentamente.
Nós conhecemos João, o Batista, do Novo Testamento e das Antigüidades Judaicas de Flávio Josefo (18,116-19), mas cada fonte tem uma dificuldade principal. Por um lado, Flavio Josefo nunca quis admitir que aquela escatologia apocalíptica judaica era uma força poderosa no século I e assim menciona a execução de João muito vagamente. "Eloqüência que teve um efeito tão grande no gênero humano poderia conduzir a alguma forma de sublevação", ele nos informa, "pois parecia como se eles fossem guiados por João em tudo o que eles fizeram". O conteúdo daquela eloqüência nunca é mencionado.
Por outro lado, os evangelhos canônicos insistem de que a mensagem de João foi sobre o advento iminente de Jesus e não sobre o advento iminente do Deus apocalíptico. Por exemplo, em Marcos 1,7-8, João proclama que "Depois de mim, vem o mais forte do que eu, de quem não sou digno de, abaixando-me desatar a correia das sandálias. Eu vos tenho batizado com água. Ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo." Para João, o mais Poderoso era Deus, mas para Marcos era, obviamente, Jesus. Isso é fica até mais evidente na forte linguagem apocalíptica Lucas 3,7-9.16:
João dizia às multidões que vinham para ser batizadas por ele: "raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, então, frutos dignos do arrependimento e não comeceis a dizer em vós mesmos: ?Temos por pai a Abraão?. Pois eu vos digo que até mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão! O machado já está posto à raiz das árvores; e toda a árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo... Eu vos batizo com água, mas vem aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo."
Isso seria totalmente fora de lugar como uma profecia vinda da pessoa Jesus, mas se ajusta muito bem com a imagem inflamada de João de um Deus que já está vindo e que destruiria o mal de um mundo atolado nele. Esta linguagem utilizada em 3,7-9.16 vem do próprio João, mas é humanamente suavizada pela própria inserção de Lucas 3,10-14:
"E as multidões o interrogavam: ?Que devemos fazer?? Respondia-lhes: ?Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo?. Alguns publicanos também vieram para ser batizados e disseram-lhe: ?Mestre, que devemos fazer?? Ele disse: ?Não deveis exigir nada além do que vos foi prescrito?. Os soldados, por sua vez, perguntavam: ?E nós, que precisamos fazer?? Disse-lhes: ?A ninguém molesteis com extorsões; não denuncieis falsamente e contentai-vos com vosso soldo?".
De certa forma, João estava certo de que o Reino de Deus era iminente, mas não viria como ele ou muita gente esperava.
Jesus e a Escatologia. Um das coisas mais certas que nós sabemos de Jesus é que ele foi batizado por João. O que dá essa segurança é o nervosismo crescente que o fato provoca à medida que você avança na leitura do Evangelho de Marcos, passa por Mateus e Lucas e chega a João.
O texto de Marcos é totalmente sucinto na descrição do fato em 1,9: "Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio à Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no Jordão." Mas o batismo é ofuscado imediatamente pela visão de Jesus em 1,10-11: "E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, do jeito de uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: ?Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo?".
O evangelho de Mateus é muito mais defensivo. Jesus chega para o batismo em 3,13, mas sua interação com João acontece em 3,14-15: "Mas João tentava dissuadi-lo, dizendo: ?Eu é que tenho necessidade de ser batizado por ti e tu vens a mim?? Jesus, porém, respondeu-lhe: ?Deixa estar por enquanto, pois assim nos convém cumprir toda a justiça?. E João consentiu." Depois disso, em Marcos, a visão e revelação divina obscurecem o batismo.
O evangelho de Lucas é quase evasivo e a menos que você lesse cuidadosamente poderia não perceber qualquer menção do batismo do próprio Jesus em 3,21: "Ora, tendo todo o povo recebido o batismo, e no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu..." Neste caso, porém, a revelação de Deus não é acompanhada por qualquer visão de Jesus.
O evangelho de João apresenta em 1,26-33 a solução final. Ele omite qualquer menção do batismo de Jesus por João e insiste, ao invés, no testemunho do Batista sobre Jesus como "Filho de Deus" e "Cordeiro de Deus". João, o Batista explicitamente identifica Jesus (e não Deus) com aquele que é maior do que ele do qual ele tinha profetizado que estava chegando em breve. Agora, a visão celestial ajuda ao Batista a identificar Jesus e não a Jesus a reconhecer sua própria identidade: "João testemunhou, 'Vi o Espírito descer, como uma pomba vindo do céu, e permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água disse-me: ?Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer é o que batiza com o Espírito Santo?".
Mas tudo isso só enfatiza que João batizou Jesus e que, então, Jesus tinha aceitado, pelo menos originalmente, a mensagem de João do advento iminente de um Deus apocalíptico e vingador. Por exemplo, isso explicaria porque Jesus defende João, o profeta calejado pelo do deserto, em contraste com Antipas, o caniço agitado pelo vento, em Lucas 7,24-27, citando de Malaquias 3,1:
"Tendo partido os enviados de João, Jesus começou a falar às multidões a respeito de João: ?Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Mas que fostes ver? Um homem vestido com vestes finas? Ora, os que usam vestes suntuosas e vive em delícias estão nos palácios reais. Então, o que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais do que um profeta. É dele que está escrito: ?Eis que eu envio meu mensageiro à tua frente, ele preparará o teu caminho diante de ti?".
Mas o próximo verso em 7,28 reitera essa aprovação na primeira parte e logo a degrada drasticamente na segunda parte: "Eu lhe falo, entre esse nascido de mulheres ninguém é maior que o João; ainda o menor no reino de Deus é maior que ele".
Já que eu considero que ambas as declarações vieram do Jesus histórico, eu penso que Jesus começou aceitando a teologia de João da iminência de Deus, mas, precisamente por causa do que aconteceu a João, ele mudou para uma teologia da presença de Deus. João esperou o advento de Deus, mas ao invés disso veio a cavalaria de Antipas. João foi executado e Deus ainda não veio como uma presença vingadora. Talvez, pensou Jesus, Deus não agisse assim porque Deus não fosse assim?Por isso, a própria proclamação de Jesus insistia que o Reino de Deus não era iminente, mas presente, já estava aqui em baixo, nesta terra e, embora devesse ser consumado no futuro, era presente agora e não só uma realidade de um futuro iminente.
Mas Jesus dificilmente poderia ter feito tal reivindicação espetacular sem imediatamentejuntar outra a ela. Alguém pode falar eternamente sobre a iminência futura do Reino e, a menos que a pessoa seja tola o bastante para dar uma data precisa, não se pode comprovar se ela está certa ou errada. Nós estamos fazendo nada além de esperar que Deus aja, e além das atitudes preparatórias de fé, esperança e oração, não há nada mais que nós possamos fazer. Quando Deus agir, será, presumivelmente, como um ?flash? de raio divino para além de todas as categorias de tempo e lugar.Mas reivindicar um Reino já presente aqui e agora exige alguma evidência, e a única que Jesus poderia ter oferecido é esta: não é que nós estamos esperando por Deus, é Deus que está esperando por nós. O Reino presente é um ?eschaton? colaborativo entre o mundo humano e o mundo divino. A Grande Faxina /Ordenamento Divino é um processo interativo com um começo aqui e agora e uma consumação futura (breve ou longa?) a ser consumado. Aconteceria sem Deus? Não. Aconteceria sem crentes? Não. Para ver a presença do Reino de Deus, disse Jesus, lhe faço um convite: venha, veja como nós vivemos e então viva do mesmo jeito.
Finalmente, é claro que o Deus-presente de Jesus não era como o Deus-iminente de João, um Deus vingador e violento. Escatologia participativa significou a resistência não violenta à brutalidade comum da civilização humana em geral e à brutalidade padrão do imperialismo romano em particular.
João e Jesus:
Reino de Deus como monopólio ou franquia?
Havia, porém, outra diferença principal entre João e Jesus, além daquela em relação à iminência ou presença do Reino de Deus na terra. E era quase uma necessária concomitância dessaprimeira distinção. Eu coloco isto deste modo: João teve um monopólio, mas Jesus teve uma franquia. João era "o batista" ou "o Batizador" - esse era o seu apelido tanto nas Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo como no Novo Testamento. Não havia muitos lugares de para a realização do batismo Jordão acima ou abaixo, e você simplesmente ia para o lugar mais próximo de sua própria casa. Você ia até João e só até ele. Então, para pôr um fim ao movimento dele, Antipas só teve que executar João. Poderia ficar na memória, haveria muita saudade e tristeza por uma ou duas gerações, mas, como o movimento dependia da vida de João, ele acabou com a morte dele. Uma vez mais, eu penso, Jesus observou e aprendeu. E aqui é como a estratégia dele diferiu da de João.
Em primeiro lugar, vamos lembrar do que já foi dito acima. Jesus anunciou a presença do Reino de Deus convidando todos/as a vir e ver como ele e os seus companheiros/as já tinham aceitado isto, já tinham entrado nele e já estavam vivendo nele. Para experimentar o Reino, afirmou ele, "venha, veja como nós vivemos e então viva como nós". Mas isso presume um programa comunitário, presume que Jesus não tinha somente uma visão ou uma teoria, mas uma práxis e um programa - e um programa não só para ele, mas para outros/as também. O que foi isso?
Basicamente foi isto: curar o doente, comer com esses que você curou e anunciar a presença do Reino naquela mutualidade de vida. Você pode ver este programa comunitário funcionando em textos como Marcos 6,7-13 e Lucas 9,1-6 ou Mateus 10,5-14 e Lucas 10,1-11. Note algumas características incomuns desses textos. Primeiro, o próprio Jesus não se estabelece em Nazaré ou Cafarnaum e envia os/as companheiros/as dele para que tragam as pessoas até ele, como se ele fosse o monopolizador do Reino. Segundo, ele pede para que os/as outros/as façam exatamente o que ele está fazendo - curando doentes, comendo com eles/as e proclamando a presença do Reino. Terceiro, ele não lhes diz que curem em nome dele ou até mesmo que rezem a Deus antes de curarem - nem ele reza antes da cura. Isso é realmente bastante extraordinário e só pode ser explicado pela presença do Reino e pela participação das pessoas nisto - se você está no Reino presente aqui e agora, você já está em união com Deus e pode agir de acordo com esse fato.
A lógica do programa do Reino de Jesus é a mutualidadede cura - como o poder espiritual básico - e a comensalidade - como o poder físico básico - , compartilhadas livre e abertamente. Este processo construiu comunidade de partilha a partir da base como uma alternativa positiva e possível em relação à comunidade romana de ganâncias e acúmulos que Antipas estabeleceu a partir das elites. Está bastante claro que a comida é a base material de vida e que o controle de quem come ou não determina todo o resto. Até mesmo se nós normalmente formos bem nutridos, perceberemos nossa dependência absoluta da comida acima de qualquer outra coisa - depois que isso é sanado, há muitas outras necessidades, mas em primeiríssimo lugar vale: sem comida não há vida. Assim, comer como preenchimento da necessidade física básica está relativamente claro e compreendido, mas curar com um poder espiritual é muito mais difícil de se entender.
Está bastante explicitado que Jesus era um grande curandeiro e, apesar disso, nós explicamos esta capacidade, sua veracidade parece seguramente firme. No seu famoso livro de 1980, Pacientes e Curandeiros no Contexto da Cultura, Arthur Kleinman enfatizou que (pág. 72):
Um axioma fundamental da antropologia médica é a dicotomia entre dois aspectos da doença: mal (disease) e enfermidade (illness). Mal refere-se a um mau funcionamento de processos biológicos e/ou psicológicos, enquanto o termo "enfermidade" se refere à experiência e ao significado psicossociais do mal percebido. "Enfermidade" inclui respostas pessoais e sociais secundárias ao mau funcionamento primário do "mal" (disease) no estado fisiológico ou psicológico do indivíduo (ou ambos).... Visto desta perspectiva, "enfermidade" é o processo de moldar o "mal" em comportamentos e experiências. É criada através de reações pessoais, sociais, e culturais ao "mal".
E curar (curing) está relacionado com o mal (disease), enquanto sanar (healing) está relacionado com enfermidades (illness). Às vezes, um mal pode ser curado, mas muito freqüentemente o máximo possível é sanar a enfermidade que o cerca. Isso era especialmente verdade para a medicina tradicional, mas ainda hoje continua sendo verdade, especialmente quando diz respeito a doenças crônicas ou terminais.
Quando eu tentei explicar aquela distinção entre curar males e sanar enfermindades aos meus estudantes da Universidade de De Paul, Chicago, EUA, eles normalmente entendiam o complexo mal/enfermindade em termos psicossomáticos e interpretavam sanando como um fenômeno psicológico. Eles tiveram muita dificuldade em compreendê-lo como aquilo que eu chamo um complexo sociossomático até que eles assistiram ao filme Philadelphia em 1993. Você recordará que Tom Hanks fazia o papel de Andrew Beckett, um advogado gay demitido pela sua empresa de advocacia porque descobriram que foi infectado pelo vírus HIV por causa de sua homossexualidade. Todos os meus estudantes entenderam que o mal de Beckett não poderia ser curado, mas, no desenrolar da história, eles também puderam ver que a enfermidade dele estava sendo sanada pelo apoio do seu companheiro/namorado, da sua família, e pelo sucesso do processo no tribunal contra a discriminação ilegal da sua antiga empregadora. Curar não era possível, mas sanar ainda era. Não tudo, com certeza, mas tambémnão nada.
Aqui temos mais um exemplo encontrado no livro escrito por Arthur Kleinman, seu estudo em 1988 sobre "As narrativas das enfermindades". Ele cita "Lenore Light? uma animada médica internista de 29 anos que vem de família negra de classe média alta e trabalha em uma clínica ?num bairro de periferia? ", que, diz ela, "tornou-me radical: é um encontro revolucionário com as fontes sociais de mortalidade e morbidez e depressão. Quanto mais eu vejo, mais chocada eu fico do quão ignorante eu tenho sido, insensível às causas sociais, econômicas, e políticas da enfermidade". Aqui o exemplo específico dela:
Hoje eu vi uma mãe obesa e hipertensa de seis filhos. Nenhum marido. Nenhum apoio familiar. Nenhum trabalho. Nada. Um mundo de violência e pobreza brutalizadoras, drogas e gravidez na adolescência em alto índice e - e somente crises que entorpecem tudo, uma após outra e após outra. O que eu posso fazer? O que adianta recomendar uma dieta de pouco sal, adverti-la para controlar a sua pressão: ela está debaixo de tamanha e real pressão exterior, o que importa a pressão interna? O que a está matando é o mundo dela, não o corpo dela. Na realidade, o seu corpo é o produto do seu mundo. Ela é uma velha baleia enorme, acima do peso e disforme, que é uma sobrevivente das circunstâncias e da falta de recursos e das mensagens cruéis que mandam consumir e continuar tocando a vida, impossível de ouvir e não sentir raiva dos limites do seu mundo. Ei, o que ela precisa não é medicamento, mas uma revolução social.
Ela tem razão: "o que nós precisamos é prevenção, não os bandaids que eu vivo todo diacolocando sobre profundas feridas internas (pp. 216-17). Sanar é o que acontece dentro de uma comunidade de preocupação mútua, apoio e ajuda, e isso é uma realidade sóciossomática e não simplesmente uma realidade psicossomática.
A sanação da enfermidade por Jesus e seus companheiros/as deve ser entendida dentro de um esquema de revolução social preventiva, nos termos de Light, e numa estrutura do Reino da Grande Faxina Total e Cósmica de Deus do mundo, nos termos próprios dele que são ainda mais radicais. Não se surpreenda, naturalmente, se um grande e famoso curandeiro, como Jesus ou Esculápio , tem a reputação de ressuscitar os mortos, isso é, enfática e triunfalmente fazer surgir vida a partir da (de dentro) morte. Não se surpreenda se você achar isto nos anúncios dos seus seguidores/as, mas fique muito surpreso/a se você achar isto nos testemunhos dos seus pacientes.
Epílogo
A relevância do "a escavação a partir do inferno"
Eu termino esta reflexão partilhando uma descoberta arqueológica que eu não uso como prova histórica, mas como símbolo dramático do foco de Jesus no Mar da Galiléia, sob o governo de Herodes Antipas no final dos anos 20 E.C. É um emblema triste do que era a vida de pescadores e de camponeses, uma vez que Antipas havia criado a Romanização através da urbanização para a comercialização no Lago de Tiberíades. É uma resposta simbólica às três perguntas de abertura deste capítulo e especialmente à pergunta por que o Jesus está tão freqüentemente nos arredores do lago.
No verão de 1985, uma seca muito severa tinha abaixado o nível de água no Mar da Galiléia e exposto praias ao longo da toda a sua margem. Ao final de janeiro de 1986, dois irmãos, Moshe e Yuval Lufan do Kibutz Ginosar, a noroeste do lago, descobriram um grande barco afundado na lama no lado oposto de Migdal ou Magdala, logo ao sul da casa deles.
Em seu livro lançado no ano 1995, "Sea of Galilee Boat: An Extraordinary 2000 Year Old Discovery" (O Barco do Mar da Galiléia: Uma extraordinária descoberta de dois milênios), Shelley Wachsmann registra em detalhes fascinantes o penoso trabalho de restauração diligente de Orna Cohen do Laboratório de Conservação do Instituto de Arqueologia da Universidade Hebraica. As madeiras do barco tinham a consistência de papelão molhado ou queijo macio, e não era nenhum milagre que Wachsmann chamou isto "a escavação do inferno" (pág. 59). Foi uma década de trabalho de restauração até que o barco pudesse ser colocado em exibição pública no Kibutz Ginnosar no Museu Yigal Allon, nomeado para honrar o soldado-estadista israelita que tinha vivido uma vez naquele lugar.
O barco original tinha aproximadamente 8 ½ metros de comprimento por aproximadamente 2 ½ de largura, tinha mastro e velas, usava dois remos grandes, um em cada lado, e um grande leme dobradiço na popa. É certamente o tipo de barco de trabalho duro imaginado nessas histórias sobre Jesus e os Doze no lago. Wachsmann lhe dá a seguinte data: "o barco existiu aproximadamente entre 100 a.C e 67 d.C. No momento eu não acredito que seja possível ser mais preciso do que isso" (pág. 349). Eu cito isto aqui não como prova ou argumento para o que estava acontecendo no lago no tempo de Jesus, mas eu uso isto como um símbolo ou emblema das dificuldades que apareceram por causa do processo de comercialização do lago no período de Herodes Antipas durante a vida pública de Jesus.
Primeiro, a construção do barco envolveu o aproveitamento do material de barcos mais velhos. Depois, sua quilha era metade de madeira de cedro - muito adequada, masreaproveitada - e metade de madeira de jujuba bastante inadequada. Além disso, sua superfície tinha sido substituída não com material novo, mas com pedaços e pedacinhos ajuntados. "A obra continha um total de pelo menos sete tipos diferentes de madeira", escreveu Wachsmann. "Quem quer que tenha construído este barco tinha realmente raspado o fundo do barril para conseguir madeira" (pág. 252). Finalmente, um dia ele não estava mais à prova das ondas. Seu mastro, vela, remos, o poste central e o poste na popa foram retirados para futuro uso em outros barcos. E todos os pregos de ferro foram tirados da madeira para uso futuro. Foi retirado então para fora do ancoradouro de Magdala e afundado num cemitério para barcos que nem serviam mais como fonte de peças para reparos em outros barcos.
Em termos da pergunta que abriu esta discussão, então, Jesus passou seu tempo no e aos arredores do lago porque foi precisa e especificamente às margens do Mar da Galiléia que a radicalidade do Deus de Israel confrontou a normalidade da civilização de Roma sob o reinado de Herodes Antipas nos anos 20 do primeiro século E.C.
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