Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
Veja os detalhes da solenidade de repatriamento do acervo Brasil: Nunca Mais
Uma solenidade no dia 14 de junho, na Procuradoria Regional da República da 3ª Região (PRR–3) em São Paulo, marcou o repatriamento do acervo (documentos e microfilmes) "Brasil: Nunca Mais". O projeto foi desenvolvido clandestinamente no período da ditadura militar, entre 1979 e 1985, pelo na época arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright.
O evento contou também com dois depoimentos: do metodista, Anivaldo Padilha, 71, que passou 13 anos no Exílio apoiado pelo Conselho Mundial de Igrejas - CMI e das redes ecumênicas de apoio que o levaram clandestinamente ao Uruguai, Argentina e Chile. Depois de meses foi para os Estados Unidos amparado pelas igrejas protestantes americanas, onde conseguiu reconstruir a vida e continuar, no exterior, a luta contra a ditadura. Posteriormente, mudou-se para Genebra, sede do CMI. E da luterna diretora executiva do Centro Ecumênico de Serviço - CESE , Eliana Rolemberg, 67, que passou 8 anos exilada na França. Ambos sofreram abusos nos tempos da ditadura. Padilha disse, entre uma lágrima e outra, sobre os momentos de tortura vivenciados durante 20 dias de interrogatório a partir de 28 de fevereiro de 1970, nos porões do Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI – Codi), em São Paulo. Segundo Padilha, ele foi conduzido para uma sala, interrogado e torturado várias vezes, inclusive pensou em suicídio.
Depoimento - Padilha afirma: "o suicídio parecia ser o único caminho, mas percebi que nem a opção de suicídio me era disponível. Iniciei um processo de revisão de minha vida, sobretudo de meu envolvimento pessoal na Igreja Metodista, baseado na espiritualidade encarnada no mundo e nas dores do próximo. Foi essa espiritualidade que me levou a dedicar-me a solidariedade dos oprimidos, discriminados e a construção de um mundo mais justo e verdadeiramente democrático. Tomei consciência que minha vida pertencia a Deus, pois eu havia dedicado inteiramente às exigências da minha fé, tudo isso me fez procurar forças necessárias para resistir porque eu era fisicamente fraco. O caminho da superação foi o perdão, mas faço questão de qualificar que o perdão é interpessoal porque há momentos que ele é mais importante para quem perdoa do que para quem precisa ser perdoado. No meu caso ele foi muito mais importante”, disse fazendo referência ao final de seu depoimento nas palavras do profeta Jeremias "quero trazer a memória aquilo que me dá esperança" (Lm 3.21).
Acervo digital - o acervo estará totalmente disponível em um ano, contem um milhão de fotocópias de 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelou a extensão da repressão política na época, foi enviado pelo arcebispo ao Conselho Mundial das Igrejas (CMI), nos Estados Unidos, e agora retorna ao Brasil. O conteúdo estará disponível na internet, através da página do Arquivo Público do Estado de São Paulo (www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/)
Na ocasião, os religiosos ficaram sabendo que os processos da Justiça Militar poderiam ficar até 24 horas com advogados dos envolvidos e realizaram fotocópias dos documentos, enviados aos Estados Unidos por medida de segurança. Um kit dessas cópias foi colocado para pesquisa na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1988, mas parte das páginas de alguns processos sumiram, principalmente a com o nome de torturadores.
Segundo Marcelo Zelic, do Armazém Memória, o repatriamento aconteceu durante um convênio com o Arquivo Público do Estado de São Paulo, os autores do projeto "Brasil: Nunca Mais" e o Ministério Público Federal (MPF). Ele ressalta que o projeto é importante no resgate da história do país e permite que novas gerações saibam o que aconteceu naquela época, para que isso não se repita.
Importância para a sociedade - a professora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista (Fateo) e membro do Comitê Central do CMI representando a Igreja Metodista no Brasil e as igrejas-membros da América Latina, Magali do Nascimento Cunha, comentou a importância desse resgate para a sociedade brasileira por dois motivos: “primeiro, para a sociedade brasileira que não pode apagar o passado, tem que evitar esta tentação do ‘sigilo eterno’ mas sim retomá-lo para avaliar o seu presente e repensar o futuro. Isto é por demais importante para as gerações mais jovens que só conhecem esta história de ouvir falar (e quando ouvem falar) para que nela se inspirem para semear paz e justiça nos nossos tempos e no porvir. Segundo, é significativo para as igrejas, pois mostram ao Brasil e ao mundo um testemunho bem concreto da palavra de Jesus ‘conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. O compromisso com a verdade é o compromisso cristão bem como a solidariedade e a justiça que dela emanam. Mostrar do que o movimento ecumênico é capaz no testemunho de Jesus, que também foi torturado e preso injustamente e viveu isto em nome da Vida em Abundância, é algo realmente muito significativo da parte das igrejas.”
Voz e ação profética - o Bispo da Igreja Anglicana do Panamá e Presidente da Junta Diretiva do Conselho Latino Americano de Igrejas (CLAI), Julio Murray, disse que “em meio há um cenário de morte, havia um cenário de esperança que haveria paz. Diante dessas situações permanece o testemunho de Jesus Cristo de amar uns aos outros. País como Brasil, Argentina, Chile e outros da América Latina, tem metodistas, presbiterianos e católicos que tiveram uma iniciativa concreta que apoiavam a vida e não a morte. Em meio desse cenário tão difícil que nasce o CLAI com uma voz e ação profética e gestos concretos com um ecumenismo comprometido com a vida. Ao passar mais de 30 anos, não podemos ser cúmplices da impunidade, da corrupção de toda ação que vá contra os direitos humanos.”
Repatriação dos documentos - para o Bispo Emérito da Igreja Metodista, Paulo Ayres Matos, a repatriação desses documentos que estavam nos Estados Unidos e no Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra, é colocada “à disposição da sociedade brasileira, para que ‘nunca se esqueça para que jamais aconteça’, como afirma D. Paulo Evaristo Arns. Por outro lado, se durante os anos de chumbo as lideranças das igrejas tradicionais compactuaram de forma vergonhosa com a ditadura militar, inclusive em nossa própria Igreja Metodista, houve gente que em nossas igrejas foi capaz de assumir o risco de desafiar o sistema e enfrentá-lo animada pela fé em Jesus Cristo, lutando contra a violência do terror de Estado e em defesa dos direitos humanos, como o pastor presbiteriano Jaime Wright.”
Paulo Ayres também foi enfático ao dizer sobre essa triste página vivenciada pelas igrejas na época da ditadura levadas pela intolerância e fanatismo, o que induziram líderes evangélicos a se tornarem instrumentos do regime militar delatando aos órgãos de repressão e tortura seus próprios irmãos e irmãs na fé. De acordo com o bispo, é preciso lutar “para que não aconteça em nossos dias atuais a mesma intolerância na repressão àqueles e àquelas que discordando das lideranças de nossas igrejas são suficientemente corajosos para assumir a luta contra toda forma de intolerância, descriminação, fanatismo e violência contra grupos minoritários de nossa sociedade. Que as futuras gerações metodistas não venham sentir vergonha de nosso presente, como muitos de nós sentimos vergonha do passado de alguns de nossos antecessores. ‘Que não se esqueça para que não mais aconteça’ deve ser nossa oração constante ao nosso Bom Deus”, conclui.
Marco histórico - Eliana Rolember acredita que o ato público “é um marco histórico porque realmente resgata o que foi aquele período, muitos estão tentando fazer isso, mas o tipo de resgate que está se fazendo hoje com um peso da participação solidária do Conselho Mundial de Igrejas - CMI e a questão do movimento ecumênico é o diferencial do evento de hoje. Inclusive a questão de ter a oportunidade de falar do Brasil: nunca mais, é falar que hoje estamos reivindicando uma comissão de verdade, não é a comissão da verdade. Que seja também, uma comissão de verdade e justiça, porque não basta abrir os arquivos, embora seja fundamental investigar, mas a questão agora é superar a falta de impunidade que existe no Brasil como algo que não podemos esperar mais. Continuamos vendo uma situação que as coisas são claras e precisa existir algum tipo de punição.”
Ela destaca ainda sobre pedido de perdão realizado pela Igreja Metodista em Brasília: “Como meu processo era ligado a Igreja Metodista, que foi representada pelo Bispo Stanley da Silva Moraes, ele disse que estava lá para pedir perdão, não só pelo metodista Fred Morris, mas também a ela. O perdão é algo muito importante quando se dá dentro de um mesmo campo. É muito diferente você escutar um pedido de perdão de uma igreja do que você dizer em relação aos torturadores, você perdoa? Eu acho muito diferente, porque em relação a eles, a questão não é a mesma, é um outro campo que eles tinham a intenção de nos destruir, o que não é o caso da Igreja, podem existir lideranças que tiveram o papel de colaboração, mas isso não é a Igreja.”
O moderador do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Walter Altmann, afirmou que foram “tantos sonhos e compromissos duramente golpeados pelo regime militar. Até os dias de hoje, não temos tido a condição de fazer chegar aos familiares os restos mortais dos desaparecidos.” Para ele “o resgate da memória é algo assencial não apenas como recordação, mas como um avanço social e político em relação ao trágico do passado.”
Atualmente, o "Brasil: Nunca Mais" está na 37ª edição. Lançado em 15 de julho de 1985, ele foi reimpresso mais de 20 vezes nos dois primeiros anos.
Confira a cobertura completa do evento na próxima edição do jornal Expositor Cristão.
Texto e fotos José Magalhães