Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Texto da Folha de São Paulo

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Não sejam maus

A estrutura intelectual do Ocidente assenta na idéia otimista de que o mal nasce da ignorância

EU JÁ SABIA que o assunto não era pacífico. Mas insisti. Na última coluna, desci na cave do criminoso austríaco que, durante 24 anos, seqüestrou, violou e engravidou a própria filha. E uma parte dos leitores se recusou a descer comigo. Pior: alguns escreveram para esta Folha, indignados com o cronista. Não gostaram do tom cômico da prosa e das meditações pessoais sobre o mal.
O tom cômico é inevitável, meus amores. Uma coisa é violar a filha. Outra é seqüestrá-la durante 24 anos. Tudo isso é tragédia. Ou, como dizem os ingleses, "no laughing matter". Mas juntar duas tragédias num crime só, peço desculpas, é furar os limites do imaginável. Quando tal acontece, a nossa racionalidade é jogada em território virgem e absurdo. E isso é comédia.
Aliás, o próprio criminoso tem contribuído para a farsa. Nos últimos dias, os jornais europeus relataram as declarações de Josef Fritzl na cadeia. São declarações que procuram justificar os seus atos. E que me fazem rebolar de riso.
Segundo Fritzl, a filha andava com "más companhias". Fumava. Bebia. Provavelmente namorava. Seqüestrá-la e violá-la durante 24 anos foi uma forma de a afastar das drogas, dos rapazes e das discotecas. Haverá alguém que duvide da eficácia do método?
Claro que, confrontados com a terapia, talvez seja possível dizer que 24 anos em cativeiro são um exagero. O próprio Fritzl admite que sim. Mas a culpa não é dele, acrescenta em novas declarações. A culpa é dos nazistas, afirma ainda, que incutiram nele uma educação de disciplina e intolerância. Não sei se os nazistas tinham por hábito seqüestrar e violar as próprias filhas. Mas percebo a idéia.
Como conclusão, Fritzl tem queixas do jornalismo e da forma como é retratado pela mídia. "Não sou um monstro", diz ele. Discordo. Ele é um monstro, sim. Mas um monstro da comédia.
E chegamos ao problema do mal. Por que motivo uma parte generosa dos leitores não tolera a palavra "mal" para explicar o caso?
Questão de civilização, creio. A estrutura intelectual do Ocidente, na qual vivemos e pensamos, assenta na idéia otimista de que o mal nasce da ignorância. Ou, inversamente, só o conhecimento permite uma vida virtuosa, como diria Platão pela boca de Sócrates. Quando os seres humanos se aproximam da luz da razão, a ignorância deixará de ter lugar nas suas condutas. Porque o mal é fruto da ignorância.
O Iluminismo continental do século 18 acabaria por retomar e aprofundar essa "philosophia perennis": pelo exercício da razão, seria possível regenerar as iniqüidades que afligem a condição humana e, por arrastamento, regenerar os próprios seres humanos. E as grandes "teologias políticas" que saíram desse caldo apontaram na mesma direção.
O mal nasce da pobreza, material ou cultural; pela redistribuição eqüitativa dos recursos, materiais ou educacionais, o mal será vencido e a humanidade poderá marchar rumo ao supremo bem.
E, se a redistribuição eqüitativa dos recursos não resolve os problemas, então o mal é fruto da doença ou da loucura. Estamos na presença da "medicalização do mal", uma constante nos sistemas jurídicos das democracias liberais.
É essa "medicalização do mal" que tem crescentemente substituído a idéia terrível (e antiiluminista, e antiotimista, e anticivilizacional) de que o mal é sobretudo uma forma de estar no mundo. Não é fruto da ignorância, da escassez, da doença. É uma qualidade intrínseca da nossa humanidade. E, ao ser uma qualidade intrínseca, é também tocada por uma sombra de mistério: exatamente como as restantes qualidades humanas -o amor, a compaixão, o sacrifício- que nenhum tratado filosófico, médico ou psicanalítico será alguma vez capaz de explicar inteiramente.
Os seres humanos são capazes de tudo; de matar, torturar ou humilhar com pleno conhecimento das suas ações. Eles são, como no poema de William Ernest Henley, curiosamente citado pelo bombista Timothy McVeigh minutos antes de ser executado, "senhores do seu destino" e "capitães da sua sorte".
Mas o lado redentor é que eles também são capazes do oposto: de amar e de ser amados; de dar alento a quem precisa; e de condenar, sem fugas ou desculpas, condutas objetivamente desumanas.
Os leitores não devem temer palavras. Devem temer atos. Porque são atos que nenhum sistema ou terapia será capaz de erradicar da nossa frágil e complexa condição.


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