Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
Reforma Protestante: Precisamos de Erasmos?
Desidério Erasmo (1467-1536) conhecido como Erasmo de Roterdam, nasceu em Roterdam, na Holanda. Foi provavelmente um dos mais eruditos dentre aqueles que confrontaram as incongruências da religião cristã ocidental. A pena de Erasmo não poupou a Igreja, o clero, as imagens, a idolatria de seu tempo. Sua sátira é extremamente ácida, e provoca tanto o riso nos irreverentes, como a ira naqueles que são alvo da trama lamentável. As observações de Erasmo nos remetem a uma pergunta: Os cristãos devem criticar os abusos e desvios observáveis em seu contexto?
Erasmo viveu durante um período em que a Igreja estava chafurdada em um mar de escândalos, abusos e desmandos. Para um observador capaz como ele não era difícil perceber a real situação por trás de toda aquela liturgia cheia de pompa e circunstância. O que Erasmo viu, muitos outros viram, mas, por medo ou conveniência preferiram omitir-se. A Igreja de então, desfrutando de um poder político imenso, se impunha através da manipulação. Assim pouquíssimos ousavam fazer públicas suas opiniões. Erasmo, entretanto, vai desafiar o sistema. Talvez, pelo fato de ter sido filho bastardo de um padre, reuniu os ingredientes necessários para desenvolver uma índole rebelde. Carregava um conflito interno suficientemente inflamável e em adição a isto tinha acesso a informação “privilegiada” direta dos bastidores eclesiásticos.
Tornou-se sacerdote católico mas parece que jamais sentiu-se exatamente à vontade no hábito. Não levava jeito para a contemplação passiva dos fatos; Ícone máximo do humanismo, contestaria como ninguém os desacertos da igreja pavimentando o caminho para a reforma protestante. Muito embora jamais tenha se desvinculado da Igreja Romana, como fez Lutero, seu contemporâneo, Erasmo incomodou suficientemente; Na verdade, tentou permanecer neutro na grande controvérsia luterana, mas a igreja o pressionou e não o deixou permanecer em cima do muro. A mensagem que lhe passaram foi: “Enquanto ele se recusar a escrever contra Lutero, nós o consideraremos um luterano.”
Apesar de ter causado enorme transtorno aos “sucessores de Pedro”, parece que sua situação não chegou às raias da ameaça de morte como foi o caso de Lutero. Sua crítica à igreja de Roma foi curiosamente tolerada. Já em 1502, teve a coragem de publicar o “Manual do Cristão Militante”, onde protesta contra o cristianismo protocolar oferecido pela velha e viciada igreja. O livro faz grande sucesso por toda a Europa e soa como um toque de despertar das consciências com respeito ao cristianismo autêntico. Diz ele: “Consideremos por um momento a questão do batismo. Realmente pensas que a cerimônia em si faz de ti um cristão? Se tua mente preocupa-se com assuntos mundanos, serás um cristão na superfície, mas interiormente és o mais pagão dos pagãos. (…) Não há vícios mais perigosos do que aqueles que carregam a aparência da virtude. (…) A caridade não consiste em muitas visitas à igreja, em prostrações diante de estátuas de santos, no ato de acender velas ou na repetição de um determinado número de preces. Deus não tem necessidade dessas coisas.”
Erasmo está denunciando a inconsistência de uma religiosidade morta e sem equivalência com a essência da mensagem evangélica. Inconformado com tamanhos desmandos e sem conseguir se enxergar como parte efetiva daquela instituição que orgulhosamente posava como representante máxima do Cristo na Terra, Erasmo começa a dar sinais em seus escritos de que a leitura que fazia do ensino de Jesus era diametralmente oposta àquela que faziam os seus superiores.
Torna-se temido em toda a Europa pelo dom devastador que tinha de ridicularizar aquilo que era digno de desprezo. As crenças idólatras difundidas pela igreja Romana, com seu culto aos santos, são violentamente atacadas em “Sobre a Ingestão de Peixes”, uma de suas mais provocantes obras. Esse diálogo curioso e improvável entre um açougueiro e um pescador, denuncia em tom jocoso a idolatria e o desvio da fé cristocêntrica. Ao remover o Cristo do centro, a igreja perdeu-se em um mar de superstições e práticas mais devidas ao paganismo do que ao legado dos apóstolos.
Apesar, entretanto, da sua fúria com as letras, Erasmo cria numa atitude gentil para implantar as mudanças na igreja, razão porque acabou afastando-se de Lutero; Esse afastamento se deu, em parte por causa da pressão de papas e reis, mas também em função da repulsa que sentia pela dureza e veemência com que aquele conduzia a sua reforma. Revela o seu caráter pacífico em A Guerra. Diz: “Aos cristãos não fica bem pelejar senão o mais galhardo dos combates – ou seja, contra os inimigos abom
ináveis da Igreja, contra a ânsia de riqueza, contra a cólera, contra a ambição, contra o medo da morte. São estes os nossos filisteus, os nossos nabucodonosores, estes os moabitas e amonitas contra os quais nos devemos incessantemente arrojar…”
A serenidade de Erasmo em contraposição à agressividade de Lutero, entretanto, era apenas relativa. Para muitos era, “uma espécie de João Batista e Judas Iscariotes em um, a glória e a vergonha do sacerdócio. (…) Seus ideais reformadores eram baseados em uma cristandade não dogmática, um cristianismo enfraquecido exatamente porque não tinha Cristo em seu mais profundo nível.“ Seus críticos o comparariam mais tarde a Voltaire, dizendo que até no rosto se parecia com o célebre francês, sendo tão venenoso quanto aquele. Homens como Erasmo nascem para incomodar o status quo. São responsáveis pelas revisões que depuram o texto histórico; são o megafone que sintetiza e amplifica o clamor por reformas. Enquanto alguns se esforçam para dar perpetuidade à velha e bolorenta ordem, esses incovenientes contestadores se levantam para abrir portas e janelas, convidando a luz para entrar.
Nesses dias quando estamos completando 494 anos da Reforma Protestante, perplexos diante de tanta distorção doutrinária,eu me pergunto se não precisamos de Erasmos?
Texto publicado na coluna Pastoral da Revista Eclesia / Por Luiz Leite