Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Recusa de transfusão

Estado do Rio dá a religiosos direito de recusar transfusão

São Paulo, terça-feira, 27 de abril de 2010

Procuradoria endossa testemunhas de Jeová, que negam prática com base em dogmas

Determinação contraria parecer do Conselho Federal de Medicina, que deve ter sua constitucionalidade discutida pelo STF


MATHEUS LEITÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Estado do Rio vai reconhecer o direito dos fiéis da igreja Testemunhas de Jeová de recusar transfusão de sangue por motivos religiosos.
A decisão se refere ao caso de uma praticante de 21 anos que foi internada com doença pulmonar grave e se negou a receber o tratamento -o que gerou uma consulta do hospital envolvido à Procuradoria Geral do Estado. O caso ficou em estudo por quatro meses.
Nesta semana, a procuradora-geral, Lucia Lea Guimarães Tavares, responderá que trata-se de "exercício de liberdade religiosa". Segundo o parecer ao qual a Folha teve acesso, esse é "um direito fundamental, emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais".
"A minha convicção é que a pessoa tem direito a escolher, desde que seja maior e esteja consciente. Não é um tema muito simples: manter a vida de um paciente, mas desrespeitando aquilo em que ele mais acredita", disse a procuradora. A Folha apurou que o governador Sérgio Cabral acatará o parecer, transformando-o numa norma estadual no Rio, com poder de decreto.
A determinação contraria parecer do Conselho Federal de Medicina, que diz: "Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue independente do consentimento do paciente ou de seus responsáveis".
A procuradora do Rio vai entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal) para discutir a constitucionalidade do parecer dos médicos.
Se o precedente aberto no Rio for acatado pelo STF, os cristãos da Testemunhas de Jeová terão amparo legal para a manutenção do que consideram seus direitos.

Divergências
O assunto é tão polêmico que houve, inicialmente, divergência dentro da Procuradoria do Estado do Rio. Diante disso, a procuradora-geral, Lucia Lea, pediu um estudo sobre o tema ao constitucionalista Luis Roberto Barroso.
"A liberdade religiosa é um direito fundamental. Pode o Estado proteger um indivíduo em face de si próprio, para impedir que o exercício de liberdade religiosa lhe cause dano irreversível ou fatal? A indagação não comporta resposta juridicamente simples nem moralmente barata", diz Barroso no estudo.
No fim das 42 páginas, o texto conclui pelo reconhecimento do direito das testemunhas de Jeová, com a seguinte cautela: "A gravidade da recusa de tratamento, sobretudo quando presente o risco de morte ou de grave lesão, exige que o consentimento seja genuíno, o que significa dizer: válido, inequívoco, livre, informado".

Conselho diz que risco de morte é limite

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Antes que o caso chegue ao STF, o Conselho Federal de Medicina deve manter a recomendação aos médicos de que respeitem o código de ética.
"O limite da autonomia do paciente e mesmo da legislação passa a ser o risco de morte de alguém que depende de assistência e precisa de cuidados", afirma o presidente do conselho, Roberto Luiz D'Ávila.
Ele se baseia em trecho do código que determina que o consentimento do paciente é necessário, exceto em caso de "risco iminente de morte".
Já houve decisões judiciais para os dois lados. Em 2009, uma decisão de 1ª instância de Belém (PA) assegurou o direito de um fiel da igreja Testemunha de Jeová de se recusar a receber transfusão.
Em outubro de 2006, a Justiça de Pernambuco determinou que uma menina de oito anos, com anemia grave, recebesse transfusão, mesmo após os pais, da mesma religião, recusarem o tratamento.

ANÁLISE

Não há autonomia pela metade

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Embora os médicos tenham exaltado seu novo Código de Ética como uma vitória da autonomia do paciente, trata-se de propaganda enganosa.
Numa redação aliás bastante semelhante à do diploma anterior, o artigo 31 do novo estatuto, que vigora desde o último dia 13, veda ao médico "desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte".
Não é preciso mais do que um nanograma da boa e velha lógica aristotélica para perceber que a inclusão do "salvo em caso iminente de morte" anula tudo o que vem antes.
Não existe meia autonomia. Ou o cidadão tem o direito de decidir soberanamente os tratamentos que acatará, independentemente das consequências, ou não tem. Não dá para limitar a autonomia à retirada de joanetes e outras situações que não ameacem a vida.
Nesse contexto, faz sentido a decisão do Estado do Rio de Janeiro de permitir que membros plenamente capazes da igreja Testemunhas de Jeová recusem transfusões de sangue, como determinam os dogmas dessa religião.
O direito de recusa a tratamentos deriva diretamente da Constituição, tanto do inciso VI do artigo 5º, que assegura a liberdade religiosa, quanto do inciso II, pelo qual ninguém está obrigado a fazer nada que não esteja fixado em lei. E, exceto em raríssimos casos como os de internações psiquiátricas involuntárias, não há leis que obriguem uma pessoa a aceitar terapias que não queira.
De resto, essa discussão chega ao Brasil com pelo menos uma década de atraso. Na maioria das democracias ocidentais, é reconhecido o direito de recusar transfusões. A situação muda no caso de menores. Aí é comum que médicos e hospitais recorram à Justiça para realizar o procedimento à revelia dos pais. O pressuposto é que a adesão religiosa precisa ser fruto de uma decisão livre do indivíduo, não de seus pais.

Fonte: Folha de São Paulo - SAÚDE


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