Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

Palavra Episcopal maio 2006

 

Luiz Vergílio Batista da Rosa, Bispo na 2ª Região Eclesiástica

O ciclone Katrina, em setembro de 2005, praticamente devastou a Louisiana e Mississipi, especialmente a cidade de New Orleans, nos Estados Unidos. Diante da tragédia de sua comunidade, o prefeito Ray Nagin, face à inoperância do governo federal em apoio imediato às famílias desabrigadas, publicamente denunciou que esta atitude era um ato de discriminação étnica, considerando que a população atingida era majoritariamente negra.

As reações, diante da denúncia, foram imediatas. Só quando a verdade dolorosa da discriminação étnica foi explicitada é que as ações de governo foram ágeis.

Isto nos traz outro fato, acontecido aqui. O Rev. Antonio Olímpio Sant?ana, em um Concílio de nossa Igreja, ao ser repetidamente ignorado pela Presidência, denunciou estar sendo vítima de discriminação. Houve uma onda de desconforto no Plenário, e a concessão imediata da palavra. 

Estes fatos permitem ver as dificuldades de enfrentarem-se processos históricos arraigados e silenciados. Os processos de denúncia da discriminação étnica, especialmente nos espaços religiosos, são sempre negados, pois se a Igreja trabalha com a construção de uma identidade cristã, com a formação do caráter cristão; não se pode negar a identidade pessoal, cultural e étnica das pessoas.

Este tema exige uma releitura da história da diáspora africana, como fator determinante, num país constituído por uma população majoritariamente de afro-descendentes, para a elaboração de nossa ação transformadora, profética e missionária.

Um crime (pecado) contra a humanidade

Primeiramente, precisamos considerar que a organização político-econômica de muitos dos países europeus e da América do Norte na modernidade teve, como fator de produção e acúmulo de riquezas, a exploração histórica da escravidão africana. Em segundo lugar, considerar que o  colonialismo teve componentes político-ideológico-religiosos racistas, nas suas diversas formas de expressão. Estes continuam latentes e velados em diferentes modalidades de discursos. Este é um pecado cujo sangue ainda clama da terra.

Por definição, um crime contra a humanidade é um ato de perseguição contra determinado grupo, que justifique a punição de acordo com as leis internacionais. Este conceito foi utilizado pela primeira vez no preâmbulo da Convenção de Hague, 1907, e subseqüentemente usado durante o julgamento de Nuremberg, para qualificar o Holocausto como um crime contra a humanidade. 

O art. 7º da Côrte de Crimes Internacionais, de 2003, define "crime contra a humanidade" como sendo qualquer ato, tanto esporádico quanto sistemático, como forma de ataque contra uma população civil, nas formas de assassinato, de extermínio, escravização, deportação ou transferência forçada da população, privação da liberdade mediante violação das leis internacionais (ONU), tortura, rapto, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez forçada (estupro), esterilização forçada. Ou seja, perseguição contra qualquer grupo ou coletividade por razões políticas, de nacionalidade, etnia, cultura, religião, gênero ou outros valores humanos reconhecidos como impermissíveis, sob as leis internacionais.

Portanto, só o reconhecimento da escravidão africana como um crime contra humanidade criará condições necessárias para curar a sociedade humana das relações sociais doentias e injustas. Esta é uma questão central para ação das igrejas e dos movimentos sociais, comprometidos com ideais de justiça e eqüidade.

Ações pela vida

Cremos que, para a fé cristã, o princípio moral e ético para as relações humanas é o amor a Deus e o amor aos semelhantes. Fora disso, não há salvação!

A dominação do corpo africano pretendeu negar sua humanidade e historicidade; por práticas de desumanização: a tortura, o estupro, a privação da liberdade; seja pela pregação religiosa, ao retirar-lhe suas relações ontológicas e psíquicas de estruturação de sua personalidade, pela negação de sua alma e a satanização, cultural e religiosa. É preciso lembrarmos que os povos indígenas foram vítimas, também, deste processo.

Isto, objetivamente, exige a consolidação das lutas pelos direitos da mulher e da criança, prioritariamente. Primeiro, porque o racismo, nas suas diferentes formas de discriminação, incide sobre o corpo, especialmente os corpos mais destituídos, historicamente, de poder. Logo, a luta das mulheres e das crianças por direitos violados deve constituir nossa agenda proativa.

Precisamos, também, dar conteúdo à nossa leitura bíblica, na perspectiva de escurecer nossa teologia e liturgia. Sendo originários de igrejas de missões européias ou norte-americanas, é preciso lembrar que toda e qualquer reflexão necessita considerar as noções de representação social, que se estabelecem pela linguagem, como formas de construção política, instituidoras de significados conectados às relações de poder.

Nossa igreja deve exercitar sua ação pedagógica às novas gerações, ajudando-as a vencer o medo e a desconfiança das diferenças e da diversidade. Uma igreja como lugar social, aonde as conquistas da juventude negra vão além dos espaços concedidos: o destaque esportivo ou das expressões artísticas. Mas que avance aos espaços de decisão, de governo, de liderança social; que serão alcançados pelas lutas por cidadania plena, e pelo resgate dos direitos constitucionais inalienáveis.

Contudo, só ações conexivas amplas poderão garantir direitos humanos inalienáveis, e as reparações históricas cabíveis.

A verdadeira liberdade encontrada em Cristo, na prática, deve nos conduzir às ações de testemunho público de nossa fé, que se traduz na presença do Espírito, a favor da vida, da justiça, da verdade e da paz.

Participar deste processo é compromisso Evangélico da Igreja!


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