Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 18/10/2010
Onde está a verdadeira crise da igreja
A crise da pedofilia na igreja romano-católica não é nada em comparação à verdadeira crise -- essa sim, estrutural -- que concerne à sua institucionalidade histórico-social. Não me refiro à igreja como comunidade de fiéis. Esta continua viva apesar da crise, se organizando de forma comunitária e não piramidal como a Igreja da Tradição. A questão é: que tipo de instituição representa essa comunidade de fé? Como se organiza?
Atualmente, ela comparece como defasada da cultura contemporânea e em forte contradição com o sonho de Jesus, percebida pelas comunidades que se acostumaram a ler os Evangelhos em grupos e então fazer suas análises.
Dito de forma breve, mas não caricata: a instituição-igreja se sustenta sobre duas formas de poder: um secular, organizativo, jurídico e hierárquico, herdado do Império Romano, e outro espiritual, assentado sobre a teologia política de Santo Agostinho acerca da Cidade de Deus, que ele identifica com a instituição-igreja. Em sua montagem concreta, não é tanto o evangelho ou a fé cristã que contam, mas esses poderes, considerados como um único “poder sagrado” (“potestas sacra”) também na forma de sua plenitude (“plenitudo potestatis”) no estilo imperial romano da monarquia absolutista. César detinha todo o poder: político, militar, jurídico e religioso. O Papa, semelhantemente, detém igual poder: “ordinário, supremo, pleno, imediato e universal” (Cânon 331), atributos só cabíveis a Deus. Institucionalmente, o Papa é um César batizado.
Esse poder que estrutura a instituição-igreja foi se constituindo a partir do ano 325 com o Imperador Constantino e oficialmente instaurado em 392, quando Teodósio, o Grande (+395), impôs o cristianismo como a única religião de Estado. A instituição-igreja assumiu esse poder com todos os títulos, honrarias e hábitos palacianos que perduram até os dias de hoje no estilo de vida dos bispos, cardeais e papas.
Esse poder ganhou, com o tempo, formas cada vez mais totalitárias e até tirânicas, especialmente a partir do Papa Gregório VII, que em 1075 se autoproclamou senhor absoluto da igreja e do mundo. Radicalizando, Inocêncio III (+1216) se apresentou não apenas como sucessor de Pedro, mas também como representante de Cristo. Seu sucessor, Inocêncio IV (+1254), deu o último passo e se anunciou como representante de Deus e por isso senhor universal da Terra que podia distribuir porções dela a quem quisesse, como depois foi feito aos reis de Espanha e Portugal no século 16. Só faltava proclamar o Papa infalível, o que ocorreu sob Pio IX em 1870. O círculo se fechou.
Ora, este tipo de instituição encontra-se hoje num profundo processo de erosão. Depois de mais de 40 anos de continuado estudo e meditação sobre a igreja (meu campo de especialização), suspeito que chegue o momento crucial para ela: ou corajosamente muda e assim encontra seu lugar no mundo moderno e metaboliza o processo acelerado de globalização e aí terá muito a dizer, ou se condena a ser uma seita ocidental, cada vez mais irrelevante e esvaziada de fiéis. O projeto atual de Bento XVI de reconquista da visibilidade da Igreja contra o mundo secular é fadado ao fracasso se não proceder a uma mudança institucional. As pessoas de hoje não aceitam mais uma igreja autoritária e triste, como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos.
Esse crescendo na vontade de poder, imaginado ilusoriamente vindo diretamente de Cristo, impede qualquer reforma da instituição-igreja, pois tudo nela seria divino e intocável. Realiza-se plenamente a lógica do poder, descrita por Hobbes em seu “Leviatã”: “O poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder”. Uma instituição-igreja que busca assim um poder absoluto fecha as portas ao amor e se distancia dos sem-poder, dos pobres. A instituição perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, como da família e da sexualidade.
O Concílio Vaticano II (1965) procurou curar esse desvio pelos conceitos de Povo de Deus, de comunhão e de governo colegial. Mas o intento foi abortado por João Paulo II e Bento XVI, que voltaram a insistir no centralismo romano, agravando a crise.
O que um dia foi construído pode ser num outro, desconstruído. A fé cristã possui força intrínseca de, nesta fase planetária, encontrar uma forma institucional mais adequada ao sonho de seu fundador e mais consentânea ao nosso tempo.
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor.