Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

o suposto túmulo de Jesus


Publicado no site No Minimo, 27 de fevereiro de 2007.

Faz cinco anos que foi apresentado com um certo estardalhaço, pela imprensa, o ossário do século 1 com a inscrição Tiago, filho de José, irmão de Jesus. A onda durou uns meses e então cientistas que manjam do assunto foram lá e constataram que o trecho ?irmão de Jesus? não só estava escrito com uma letra diferente como era bem mais recente.

É com estardalhaço equivalente que chega à televisão norte-americana e européia o documentário A tumba perdida de Jesus, produzido por James Cameron, diretor de Titanic. Fale de Jesus histórico e a imprensa fica mexida: é que vende jornal e causa fascínio. Dado que é sensacional e como os redatores que transcrevem o noticiário das agências entendem muito pouco do assunto, o leitor, compreende-se, fica perdido, sem saber no que acreditar.

O time tem um conjunto interessante nas mãos. É uma tumba do século 1, portanto contemporânea a Jesus, nela estavam 10 ossários, alguns deles inscritos. Foi encontrada em Jerusalém, ano 1980. Ossários são pequenas caixas de pedra onde os ossos, após a putrefação do corpo, eram guardados. Famílias com algumas posses tinham suas próprias tumbas - ossários deste tipo, na Terra Santa, são descobertos às centenas toda hora. Alguns não têm qualquer inscrição, outros vêm com o nome do morto.

Num destes dez ossários está escrito, em aramaico, Yeshua bar Youssef. É o típico nome da tradição judaica: Jesus, filho de José. Yeshua era um nome comum, Youssef idem. Jesus filhos de José eram muitos naquela terra severina. Este é o segundo ossário desta época já descoberto na Terra Santa de um Jesus filho de José. (João filho de Maria também tem muito por aqui.)

Noutro ossário está escrito Maria, o nome latino mesmo, transliterado para o hebraico.

Estamos falando de uma tumba familiar, portanto parte-se do princípio de que as pessoas ali se relacionam de uma forma ou de outra.

Um terceiro ossário tem inscrição em letras gregas de nome aramaico Mariamene a mara, Maria a quem chamam mestre.

Ainda há um ossário para Yehuda bar Yeshua. Judá, filho de Jesus.

O filme ainda não foi apresentado mas, segundo seus produtores, embora os ossos não estivessem mais lá, testes de DNA em restos foram realizados. Pelo mDNA, dá para relacionar Maria com Jesus mas não Jesus com Mariamene.

Seu caso, e parece honesto, é que temos aqui uma mãe Maria, um filho Jesus, um neto Judá, sabemos pela inscrição que o pai deste Jesus se chamava José. E não é pressupor demais que a Maria não parente pudesse ser mulher de Jesus. Estatisticamente, defendem os produtores, por mais que os nomes fossem comuns - e eram - uma família assim estruturada, nos arredores de Jerusalém, só pode ser a família do messias cristão.

Se os graus de parentesco sugeridos pelos pesquisadores realmente podem ser confirmados por DNA, eles têm um caso forte. Se as contas estatísticas estiverem certas - e isto é trivial para quem é do ramo, decididamente não é o caso do blogueiro - seu caso fica mais forte.

Mas é bom uma pausa para repassar os argumentos. Primeiro, Mariamene. Por que concluir que este era o nome de Madalena? Um dos argumentos está num texto do século 4, os Atos de Filipe, que pertencia a uma das muitas seitas cristãs. A versão mais completa deste texto foi descoberta em 1974 por um grupo de pesquisadores de Harvard. É interpretação deles que uma personagem chamada Mariamne é Madalena. Um pouco antes, no século 3, Orígenes - que foi um teólogo cristão importante e radical, capou-se e tudo - chama Madalena de Mariamme. Flávio Josefo, um historiador judeu vendido aos romanos contemporâneo a Cristo, chama Marias de Mariammes. São corruptelas naturais. Certamente Mariamene, como Mariamne, é o nome Myriam. Maria.

Então cabe pescar o argumento por um plano mais geral: o que realmente sabemos sobre Jesus? Apenas o que está no Novo Testamento. Há quem tente empurrar um trecho de Josefo que, em suas histórias da Terra Santa, citaria Jesus. Quase todo especialista cientificamente rigoroso põe o trecho em dúvida. Nas cópias mais antigas de Josefo ele não existe, começa a aparecer em cópias feitas por monges católicos já na Idade Média, tem toda a pinta de ter sido inserido ali por gente ávida por outra fonte. Devia, às vezes, ser duro basear toda a crença que tomava a Europa na existência de um homem sobre quem só o livro sagrado fala. Se ele foi tão importante, por que a burocracia romana não deixou um único registro?

Mas isto não quer dizer que Jesus seja ficção. As cartas de São Paulo sobre ele, de longe os mais sofisticados textos de todo Novo Testamento, foram escritas uma década após a morte de Jesus. São Paulo não o conheceu, mas conheceu e conviveu e brigou com gente que viveu com e foi amiga de Jesus. São Paulo dedicou um bom naco de sua vida a espalhar a palavra de um homem que muita gente ao seu redor conheceu. É indício forte o suficiente de que havia, ali em Jerusalém, um grupo de pessoas que, mesmo após sua morte, ainda falava com ênfase, com uma crença profunda, com comoção, de um rabino que os marcou muito. E este assunto a respeito deste rabino se espalhou pelo Império Romano ao longo dos anos.

Não é, do ponto de vista estritamente histórico, surpresa. O judaísmo produzia muitos ?messias? nessa época, havia seitas as mais diversas, todas seguindo de uma forma ou de outra alguma coisa das mesmas Escrituras. Era uma cultura e uma religião profundamente rachada, em dúvida, em crise, em busca de saídas. O convívio com os romanos, que já não eram o primeiro ou mesmo o segundo invasor, era difícil. O convívio com uma classe sacerdotal que controlava o Templo - aquele do qual sobrou apenas o Muro das Lamentações e em cujo lugar se ergueu a Mesquita de al-Aqsa - era difícil e, fundamentalmente, caro. Os sacerdotes extorquiam. A passagem dos Evangelhos que cita a raiva de Jesus contra os vendilhões não vêm à toa, era um sentimento difundido por uma gente entre pobre e de classe média baixa. A descrição de José, o pai de Jesus, soa típica desta classe média baixa que vivia nos reinos judaicos de então.

É fantástico que o Ocidente seja baseado, culturalmente, num tripé que junta duas culturas que construíram impérios - gregos e romanos - e uma que jamais dominou ninguém, sempre foi dominada - a judaica. E a chave do porquê deste fenômeno está perdida nesta figura, neste Yeshua bar Youssef. Outros messias judaicos não se espalharam, perderam-se. Aquele ficou. Um dos motivos pelos quais ficou é que ele fazia, à moda de um grupo judaico conhecido por fariseus, uma teologia baseada nas Escrituras mais do que no Templo. A Casa de Deus para os fariseus e para Jesus era a palavra; para os sacerdotes, era o Templo. Quando os romanos puseram o Templo abaixo, o que sobrou foi a Palavra. O judaísmo de hoje, chamado rabínico, é descendente do judaísmo farisaico. O cristianismo também.

Dos quatro Evangelhos, o de Marcos, escrito pouco mais de três décadas após a morte de Jesus, é o mais próximo de uma tradição oral minimamente confiável. Todos os outros são muito posteriores. Esta relação complicada entre Maria e José, posteriormente Madalena, este tecido de parentescos, vai se construindo, sendo contado, com alguma distância. Um equívoco comum, forçado pela Igreja medieval, é o de por Madalena como a prostituta de outra passagem, aquela que seria apedrejada. Não são a mesma pessoa. Embora daí a forçar a mão na conclusão popularizada por Dan Brown de que Madalena era sua mulher também, bem - não está dito. É interpretação de um texto muitas vezes hermético o suficiente para permitir interpretações várias.

O certo é que, sendo homem judeu, ainda mais um rabino - e isto era porque judeus o seguiam como líder espiritual - Jesus tinha que ser casado. O cristianismo é algo que nasce depois dele, a histeria católica contra mulheres de padres só vem depois do século 10. Ele se via como judeu e falava para os seus. Em seu tempo homem sem mulher simplesmente não estaria inserido no âmbito social, seria um paria, coisa que Jesus não era. Parias não são ouvidos, quanto mais seguidos.

Tudo para cairmos de volta nos ossários de James Cameron, na caixinha de pedra sabão na qual, em caracteres aramaicos ligeiros lá está Yeshua bar Youssef. Ao lado de Mariamene a quem chamam Mestra. Uma mulher chamada de sábia. (Todo judeu sabe que mulher de rabino é sábia. Sempre são. Mais que os maridos.) E seu filho Judá.

Há uma penca de blogs assinados por especialistas em história bíblica, a turma que conhece aquele período do Oriente Médio de trás para frente, sabe suas línguas - hebraico, aramaico, latim, grego. Um deles repousa quieto aí na barra direita, o de Jim Davila, Paleojudaica. Estão todos céticos. Jim, por exemplo, diz que ?infelizmente, a história da Tumba de Jesus está ganhando uma atenção enorme?. Os estudiosos, quem os acompanha sabe, ficam pasmos quando o noticiário é reciclado, e vem o Evangelho de Judas aqui, o irmão de Jesus ali - agora a família toda junta-se à festa.

E não é à toa que eles ficam mexidos. A imprensa sempre erra muito, o caso do Evangelho de Judas foi só um pouco pior. A busca por uma notícia sensacional está no nosso sangue. Se os especialistas duvidam por princípio, mesmo antes de ver o filme, então é bom tratar com um quê de ceticismo e esperar que os documentaristas apresentem seus dados, suas conclusões.

Mas a busca não vai cessar. Em princípios do século primeiro houve um homem que viveu nos arredores de Jerusalém. O que ele tinha a dizer era tão forte que sua religião, religião de povo derrotado, fez-se a religião do Império que o matou. Não é preciso sequer acreditar em Deus para constatar o impacto que Jesus, filho de José, teve no mundo. Talvez, sem sequer desconfiar.
Publicado por Pedro Doria -
Site No Mínimo


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