Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

O Metodismo Primitivo e a Responsabilidade Étnico-Racial Cristã

A propósito do Dia 13 de maio

O metodismo esteve mais do que qualquer outro movimento de seu tempo preocupado com o ser humano e a sua integralidade, o que reflete a idéia de salvação social do indivíduo no amplo trabalho de desenvolvimento da salvação comunitária. John Wesley (1703-1791), um dos fundadores do metodismo e seu principal líder, entendeu a partir de um conselho espiritual que precisava fazer amigos e, ao lado deles, desenvolver a salvação. A salvação para Wesley e os primeiros metodistas tinha, portanto, amplitude social e inclusiva.

Como qualquer outro grupo, a comunidade negra busca se adaptar aos tempos modernos sem perder conexão com a sua história e sua herança cultural. Um dos destaques essenciais da cultura africana é o sentimento de pertencimento ao grupo. Contudo, a luta para obter reconhecimento diante dos diversos segmentos sociais é árdua. A luta da comunidade negra é pelo direito de cultivar as suas tradições culturais e religiosas como tantas outras comunidades no Brasil.

Infelizmente não se comprova uma busca ávida pela reflexão sobre o tema da cultura africana (e afro-brasileira) no seio do metodismo, embora a Igreja Metodista reconheça o espaço de reflexão sobre a cultura de origem africana e afro-brasileira na expressão do ministério de combate ao racismo, o que são passos considerados significativos na comunidade metodista brasileira. No entanto, ainda se realiza muito pouco em relação à afirmação de grupo e à afirmação étnica.

A presente reflexão busca assim realçar a contribuição de John Wesley no combate à escravidão no século XVIII. Tal contribuição é vista como intenção de valorização da diversidade cultural, dentro da amplitude do tema Direitos Humanos, como indicou Theodore Runyon, na obra "A Nova Criação: a teologia de John Wesley hoje". É preponderante lembrar que John Wesley refutou vigorosamente a prática da escravidão no contexto do século XVIII, considerando-a como a mais vil já vista debaixo do sol.

No que tange ao surgimento do metodismo, é oportuno relembrar que

Os metodistas de Oxford, no início da década de 1730, quase todos homens da universidade, haviam gasto boa parte de seu tempo, dinheiro e energia no ministério de misericórdia para com o pobre - educando as crianças nos albergues, levando alimento aos necessitados, fornecendo lã e outros materiais com os quais as pessoas pudessem fazer roupas e outras coisas duráveis para usar ou vender. Esta ênfase particular em "amar o próximo" e seguir o exemplo de Cristo (que andou por toda a parte fazendo o bem", atos 10:38), continuou a caracterizar o metodismo, quando ele entrou no reavivamento.

Para Heitzenrater, "o reavivamento evangélico na Inglaterra fazia parte de um movimento muito maior do Espírito por todo o mundo. O pietismo alemão, do fim do século dezessete, o grande despertamento americano, no início do século dezoito, estavam entre os precursores do reavivamento inglês". Assim, a entrada do metodismo no reavivamento é admitida entre 1739-1744, tendo Whitefield como a figura pública mais conhecida e um dos pregadores metodistas mais vibrantes. É necessariamente isso que o tornou alvo predominante da literatura dirigida contra os entusiastas, que também foram apelidados de "metodistas".

Conforme Heitzenrater ainda, Wesley partiu para o trabalho em Bristol em março de 1739. A propósito, Bristol ocupa um espaço especial na agenda de ação dos primeiros metodistas. Uma leitura do metodismo na América Latina atribuiu a Bristol o quarto estágio do surgimento do metodismo. É em Bristol que surge a primeira sociedade nominalmente metodista. Porém, Bristol era apenas uma pequena cidade com um centro comercial em desenvolvimento, localizada no sudoeste da Inglaterra.

É fato que Bristol "estava crescendo para ser uma cidade interiorana líder no reino e o porto para o comércio com a América do Norte e com as Índias Ocidentais". Era precisamente do porto de Bristol que os "mercadores importavam tabaco e açúcar e exportavam produtos manufaturados e escravos africanos" (grifo meu).

As "Regras e exercícios para um morrer santo", de Jeremy Taylor, que alimentaram inicialmente a peregrinação espiritual de John Wesley, um dos principais líderes do metodismo, acompanharam-no até os seus momentos derradeiros. A santidade social reacende o interesse pelo ser humano, fundamentando uma responsabilidade étnico-racial no metodismo primitivo.

É muito comum referências a John Wesley e a William Wiberforce quando o contexto da leitura ou da discussão é o tema da escravidão em Wesley. A escravidão americana foi considerada pelo fundador do metodismo como a mais execrável das vilanias existentes debaixo do sol. A propósito, a carta de Wesley a Wilberforce constava de um encorajamento ao parlamentar inglês, em sua luta contra o comércio de escravos. Neste momento histórico, Wilberforce estava por abandonar a carreira política e Wesley estava com 88 anos de idade, vivendo seus derradeiros dias.

Conforme se tem notícia, um dos últimos registros no diário de Wesley alude a leitura de Gustavus Vasa, a vida de um antigo escravo de Barbados, Olaudah Equiano. No dia seguinte, inspirado pela leitura de Vasa, Wesley escreveu a última de suas cartas, a carta a William Wilberforce, datada de 24 de fevereiro de 1791, encorajando-o a lutar contra escravidão, considerando-o que Deus o tinha levatado como levantou Atanásio contra o mundo.

Na carta, Wesley encoraja Wilberforce a continuar combatendo o comércio de escravos, com as seguintes palavras: "Continúe, en el nombre de Dios en el poder de su fuerza, hasta que la esclavitud americana (la más vil que se ha visto bajo el sol) desaparezca ante ese poder". Wesley tencionou observar na carta à Wilberforce que Deus o tinha levantado para combater tal vilania. O interesse pelo ser humano fundamenta no metodismo primitivo aquilo que podemos chamars hoje de responsabilidade étnico-racial.

José Carlos de Souza sugeriu que "a identidade metodista" não é "um legado definitivamente estabelecido ad eternum", mas também definiu que Wesley não aceitaria "passivamente a transformação da identidade e teologia metodistas numa formulação estática, arrancada inteiramente da trama histórica". Ao lado, é possível recuperar umas das maiores contribuições da teologia wesleyana para a atualidade: a vivência atualizada da fé, inicialmente confessada nos credos.

A carta a Wilberforce representa um símbolo da preocupação do metodismo nascente com a questão escravista. A propósito, Wesley faleceu exatamente em 2 de março de 1791. Seu trabalho "Pensamentos sobre a escravidão" (1774), surgido quando ninguém ousava atacar o sistema escravista da Inglaterra, é vigoroso em condenar a escravidão e defender a abolição da escravatura nas terras inglesas.

Um exame da história do povo chamado metodista comprovaria facilmente, conforme José Carlos de Souza, que "Wesley estava profundamente integrado à sua época e procurou, em nome do Evangelho, responder às questões que a sociedade inglesa contemporânea consciente ou inconscientemente levantava". Não será demais admitir que o pensamento e a teologia que produzia estava em diálogo e em conexão com "as manifestações religiosas mais expressivas do pensamento religioso e da cultura em geral", o que favorece uma leitura teológica mais sistematizada do combate à escravidão em Wesley.

Conforme Gonzalo Bàez Camargo, "em 1771, [Wesley] publicou seu sério discurso ao povo da Inglaterra sobre o estado da nação". Wesley voltava-se contra o comércio de escravos, utilizando as seguintes palavras: "Rogo a Deus - exclamava - que já não exista isto! Que jamais roubemos e vendamos a nossos irmãos como bestas! Que já não os assassinemos por milhares e dezenas de milhares! Oh! que se tire de nós outros para sempre esta abominação pior que a maometana, pior que pagã! Desde que a Inglaterra é uma nação, nunca houve algo que possa reprová-la tanto como o ter participação neste tráfico detestável... A destruição total e final deste horrível comércio encherá de júbilo a todo aquele que ame a humanidade".

É urgente a elaboração de uma reflexão teológica que contemple efetivamente as expressões culturais do povo negro, assim como o modo de expressar sua fé, olhando a missão como princípio material de uma teologia que está se redefinindo em sentido eclesiológico, tendo a cultura como um parâmetro. Como lembrou Josuel dos Santos Boaventura, "a centralidade da mensagem cristã, de uma forma indireta, encontram-se presentes nas ?outras religiões? que (...) contêm sementes do Verbo".

A discussão sobre a cultura de origem africana e afro-brasileira requer, por sua vez, mais do que o mero ingresso nas discussões sobre a temática; requer uma reflexão permanente; requer conexão entre fé e conduta, assim como entre ensinamento e prática ou pensamento e experiência. É imperativo, como cristãos, expressarmos uma teologia com autenticidade cristã no tocante a preocupação com o valor da cultura de origem africana e afro-brasileira, assim como no combate ao pré-conceito e ao racismo existente no seio das comunidades e nos seus arredores.

Não é novidade que a comunidade negra foi e ainda é preponderantemente marginalizada pela história e pelo comportamento protestante brasileiro. Um exemplo claro é "demonização" dos ritmos africanos, no que se refere ao quesito música, para não falar de tantos outros pré-conceitos repassados pelo axioma teológico protestante brasileiro, preponderantemente influenciado pela herança missionária e eclesial do Sul dos Estados Unidos, nossa matriz e uma das principais referências no século XIX do protestantismo de missão implantado no Brasil.

Porém, é justamente na América do Norte que eclodiu a teologia negra, uma das maiores expressões de valoração da cultura africana que, embora tenha se desenvolvido a partir de motivações econômicas, sociais, políticas e raciais, forjou na experiência religiosa e na cultura suas premissas teológicas, confrontando uma nação e seus valores históricos com uma perspectiva cristã de que Deus também é negro. Nos Estados Unidos, o movimento negro nasceu e cresceu como Teologia e Igreja.

É inegável, por sua vez, a importância que o tema da diversidade cultural assume no final do século XX e no século presente. A importância não é devida somente à formulação de políticas públicas como valor a ser compartilhado por todos; é fundamental, sobretudo, pelo valor e consistência que ostenta em vários segmentos da reflexão, não só nos segmentos acadêmicos.

À modo de conclusão a esse item, poderia se dizer que uma leitura do combate à escravidão em John Wesley não se resume a esses fragmentos, embora eles se constituam históricos e fundamentais para uma leitura teológica, assim como para observação do cumprimento da fé, evidenciando a conexão entre fé e conduta, assim como entre ensinamento e prática ou pensamento e experiência, como já delineamos.

Gercymar Wellington Lima e Silva

É pastor metodista e especialista em estudos wesleyanos (Umesp e Unimep-SP).

Contato: gercymar@gmail.com  

Fonte: http://www.metodista4re.org.br/noticias/detalhes.aspx?IdConteudo=432&IdCanal=1



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