Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

O futuro das religiões

O futuro das religiões

CLIFFORD GEERTZ

publicado no jornal Folha de S.Paulo, de 14 de maio de 2006

Enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento mais notável -e o mais surpreendente- que as ciências sociais se vêem obrigadas a enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes erroneamente, como "o retorno da religião".
Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu -foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização.


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O estudo da religião deveria ser conduzido, desde o princípio, "do ponto de vista do indígena"
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Desde a época das sociologias clássicas -Comte (1798-1857), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936) e Max Weber (1864-1920)-, a história da sociedade, e especialmente a da sociedade ocidental considerada como seu objetivo e estágio mais avançado, foi descrita como um movimento regular, inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente definido a outro -da magia à ciência, da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, da tradição à razão: o mundo desencantado, o eu liberado de seus entraves.
A desaparição progressiva das religiões hereditárias era vista, de maneira geral, como "leitmotiv" de um uma mudança cultural; a única diferença entre uma sociedade e outra, e especialmente entre o Ocidente e o resto, era a distância que cada sociedade teria percorrido no caminho que conduz a um final comum e desmistificado.
Pode-se duvidar de que essa concepção da religião como força em constante declínio tenha sido em algum momento totalmente admitida ou aceita sem questionamento.
A persistência do interesse religioso nas sociedades mais "desenvolvidas" era evidente demais para que fosse possível ignorá-la.
Mas a partir do começo dos anos 50, época que viu o início da revolução anticolonial e o surgimento vigoroso daquilo que se viria a denominar "Terceiro Mundo", a idéia de que a secularização seria sem dúvida a voga do futuro passou a ser submetida a forte pressão. As sociedades cujas tradições ancestrais foram mascaradas por fachadas ocidentais passaram a agir subitamente em nome próprio e de acordo com as próprias representações.

Objeto flutuante
Índia ou Nigéria, Indonésia ou Argélia, para citar apenas alguns dos exemplos mais significativos, não se revelaram sociedades exclusivamente laicas. Assim que eliminada a fina película das elites ocidentalizadas, o que não demorou muito a acontecer, e embora tentassem criar e preservar uma personalidade nacional, um eu coletivo, essas sociedades se tornaram presas de conflitos de conotação religiosa -partilha, guerra civil, massacres de minorias religiosas, terrorismo religioso.
A crise entre as denominações religiosas iraquianas deflagrada pela intrusão dos EUA é só o mais recente exemplo do fato de que a evolução da sociedade moderna em direção à indiferença religiosa está longe de ser uma tendência dominante.
Uma proporção significativa dos fiéis de uma ou outra das grandes religiões do mundo vive impedida de praticar plenamente a sua fé em sociedades bastante diferentes daquelas que viram nascer essas religiões.
Estas últimas perderam pouco a pouco os lugares, as pessoas, as formações sociais dos locais e civilizações no seio das quais e em razão das quais se formaram historicamente: o hinduísmo e o budismo se dissociaram das particularidades profundas do sul e leste da Ásia, o cristianismo daquelas que estão associadas aos EUA e Europa, o islamismo das que se relacionam ao Oriente Médio e à África do Norte.
Ainda que historicamente tenha sido a estrutura cultural mais enraizada no lugar de origem e a mais afetada, em sua expressão, pelas condições locais, a religião se tornou cada vez mais um objeto flutuante, desprovido de toda ancoragem social em uma tradição fecunda ou em instituições estabelecidas.
Em lugar e em vez da comunidade solidária agregada por representações coletivas (o sonho de Durkheim), surgiu uma rede à maneira de Georg Simmel (1858-1918), difusa e desprovida de centro, conectada por afiliações genéricas, multidirecional e abstrata. A religião não se enfraqueceu como força social. Pelo contrário: parece se ter reforçado no período recente. Mas mudou -e muda cada vez mais- de forma.
É essa situação -a emergência de conflitos religiosos mais a crescente migração de pessoas e famílias rumo a sociedades mais modernas, mas igualmente diversificadas, na Europa e América do Norte, nas quais ela induz tensões e conflitos- que as ciências sociais precisam, hoje, descrever e explicar, e não uma tendência pretensamente generalizada à secularização e ao declínio da fé.
Por um lado, temos o fracasso praticamente generalizado do nacionalismo em sobrepujar e conter as diferenças tradicionais nos países a caminho da eliminação de tradições, mais de 130 dos quais surgiram entre 1950 e 2000; e de outra parte, a projeção dessas diferenças além das fronteiras desses países, no cenário mundial, em forma de forças globais.
E a situação modificada exige uma nova conceituação da religião e de seu papel na sociedade como tal. Bem ou mal, é a construção de visões de mundo com base na colisão de sensibilidades (e a construção de sensibilidades a partir do choque de visões de mundo -o processo é circular) que é preciso apresentar e compreender, no momento atual.
No que concerne à religião, o que existe de moderno na modernidade é a diversidade de crença, de fé e de envolvimento, no seio da qual existe, inevitavelmente, uma diversidade cada dia maior.
No que tange às ciências sociais, esse fenômeno se traduz em uma reorientação no sentido das abordagens hermenêuticas, semióticas e fenomenológicas. Mais que indicadores e estatísticas -índice de freqüência a locais de culto, respostas a pesquisas e outros-, o que deveria nos preocupar é a qualidade do espírito: quadros de percepção, formas simbólicas, horizontes morais.
Aquilo de que precisamos é uma espécie de quadro que permita lançar luz sobre a mudança no seio de diferentes tradições progressivamente libertadas dos contextos sociais que as viram nascer e tomar forma. E isso nos leva a estudar a modernização no seio das religiões, a não mais avaliar o avanço ou recuo "da religião" em geral, mas, sim, apreender os processos de transformação e reformulação de cada religião específica no momento em que ela se vê penetrada, de bom grado ou de mau grado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna.

Weber mal interpretado
De fato, existe no cânone clássico um exemplo dessa concepção de "modernização no seio da religião".
Trata-se da célebre tese de Weber sobre a ética protestante; mas ela foi geralmente interpretada de maneira indevida, em certo sentido por Weber mesmo, como se fosse uma tese referente a forças causais, materiais -e não uma tese interpretativa de pesquisa do sentido.
O arrazoado de Weber, pelo menos na forma pela qual o compreendo, não é que o calvinismo tenha sido uma causa material da ascensão do capitalismo, mas que na verdade lhe tenha servido de polimento -uma formulação de seu sentido no quadro, e na direção, de uma via espiritual antiga, mas combalida e em processo de mutação.
Se esse é o caso, então as múltiplas tentativas dos teóricos do desenvolvimento, incluídas algumas de minhas idéias passadas, para descobrir o "equivalente funcional" do "efeito da ética protestante" em outras sociedades parecem um tantinho (mas só um tantinho) fora de propósito.
Aquilo que procuramos -ou deveríamos procurar- identificar não é uma causa comum, mas sim uma dificuldade comum: como gerar sentido cultural em uma situação inédita, uma paisagem de relações sociais modificadas. O caso muçulmano é exemplar quanto a isso.
A busca do equivalente à Reforma protestante entre os islâmicos modernistas ocupa os intelectuais ocidentais (e intelectuais de outras regiões) desde a época de Muhammad Abdu (1849-1905), Jamal ad Din al Afghani (1838-1897) e outros representantes do "pensamento árabe na era liberal". O fracasso destes últimos em criar um islamismo reformista, enxuto e modernizado suscitou a um só tempo perplexidade e decepção entre os teóricos como também entre algumas das pessoas que buscavam emulá-los.

Desenraizamento
Esse fracasso demonstrou perfeitamente não que, como muitas vezes se afirma, o islã não seja passível de reforma, mas sim que mudou o contexto social (incluindo a degeneração colonial e a migração de número cada vez maior de muçulmanos para ambientes não-islâmicos) no qual as reformas aconteceram.
As conseqüências de nacionalismos quase sempre enganosos -ou no mínimo incompletos- que emergiram nos novos Estados, e da migração crescente de pessoas que abandonam esses Estados em troca de contextos estrangeiros, provocaram uma crise de identidade de grande monta, jamais sentida pelos protestantes de Weber, que evoluíram em seus lugares de origem, ao mesmo tempo em meio e em oposição a comunidades religiosas fixas e familiares -cantões suíços, burgos da Alemanha setentrional e colônias isoladas na América-, e não na totalidade do vasto e tumultuado mundo cristão do século 16.
Como praticamente todas as tradições religiosas contemporâneas, o islã deixou de estar estreitamente ligado a seu contexto local, mas funciona no seio deste como uma força de oposição e até mesmo de desenraizamento.
É evidente que os detalhes e as relações de poder específicas diferem, mas as tentativas dos movimentos islâmicos reformistas de se posicionarem em relação a políticas de inspiração nacionalista definidas em contexto local são um fenômeno generalizado na Ásia e África e, à medida que a migração ao Ocidente se acelera, igualmente na Europa.
Aquilo que falta, do ponto de vista das ciências humanas, no caso do islamismo -e de que dispomos, graças a Weber, no caso do protestantismo-, é uma análise cultural e fenomenológica das mudanças internas no plano da visão de mundo e do etos, do desenvolvimento de novos quadros de significação e da motivação que estimula essa transformação e fornece a ela uma orientação de longo prazo.
E não é apenas o islã que merece uma análise dessa ordem. A revitalização do hinduísmo na Índia, do budismo no Sudeste Asiático, do cristianismo evangélico e do catolicismo na América Latina bem como a preocupante emergência do protestantismo fundamentalista na vanguarda da cena política dos Estados Unidos, um país supostamente laico, precisariam ser compreendidas em termos semelhantes -como buscas por sentido em uma situação política mutável, marcada pelo discurso nacionalista e fragmentado em facções concorrentes.
O estudo da religião, em um momento em que parece se haver esvaído toda perspectiva de vê-la desaparecer da cena mundial, deveria ser conduzido, desde o princípio, "do ponto de vista do indígena", como se poderia dizer.
Aquilo que Weber fez pelos calvinistas e pelo calvinismo -substituir sua ética no contexto de seu sistema de crenças e situá-los no quadro de uma situação material cambiável, que era a um só tempo causa e conseqüência das mudanças- precisa ser feito hoje com relação a religiões diferentes e situações diferentes, se queremos ter uma chance de compreender o chamado "retorno da religião" e apreender de maneira precisa suas implicações.
A importância da religião como componente das mudanças sociais, e não mais considerada simplesmente como obstáculo a essas mudanças, nem como voz, obstinada e condenada, da tradição, faz da época atual um momento especialmente gratificante para a espécie de pesquisa que acabo de evocar.

Dentro do turbilhão
Em momento nenhum, desde a Reforma e o Iluminismo, a luta quanto ao sentido geral das coisas e das crenças que o fundamentam foi tão aberta, ampla e aguda. Vivemos uma mudança radical e não podemos perder tempo demais para compreendê-la, como viemos a compreender, retrospectivamente, o Iluminismo e a Reforma. Devemos compreendê-la agora, no momento em que se está desenrolando.
Assim como Fabrice [de "A Cartuxa de Parma", de Stendhal] em Waterloo ou Pierre [de "Guerra e Paz", de Tolstói] em Austerlitz, nos vemos projetados ao coração dos acontecimentos que buscamos observar, com toda a confusão e incerteza que isso acarreta, incluindo dúvidas quanto à realidade do que estamos presenciando.
Mas vivemos ao mesmo tempo uma ocasião formidável para nos conectar mais estreitamente à realidade social. Aplicar as ciências humanas a um fenômeno no momento em que está se desenrolando sob nossos olhos permite que escapemos aos limites da observação distanciada, em benefício do imediatismo dos acontecimentos instantâneos. Definir a maneira de proceder para chegar a esse ponto com eficácia, força e precisão deve ser a principal prioridade para as ciências humanas e as ciências sociais neste século impetuoso.
Caso o consigamos, a velha maldição chinesa "que você viva em tempos interessantes" talvez venha, ainda que ambiguamente, a se transformar em bênção.

LEIA comentário sobre este artigo por Omir Wesley, pastor metodista e coordenador da Pastoral do Instituto Americano de Lins. CLIQUE AQUI


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