Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 17/12/2010

O Evangelho do próximo

Entusiasta da missão integral da Igreja, René Padilla defende uma teologia ajustada para a realidade latino-americana.

Por Carlos Fernandes
 
Os teólogos contemporâneos são praticamente unânimes ao afirmar que o Congresso Internacional de Evangelização Mundial, realizado em Lausanne, na Suíça, em 1974, mudou os rumos do protestantismo mundial. Ali, em um ambiente de intenso debate e com a presença de representantes de mais de 120 países, foram traçados novos rumos para que a obra de Deus se adaptasse à modernidade sem perder de vista os pressupostos básicos da fé cristã.  Mas sua maior contribuição à Igreja mundial foi a consolidação da teologia da missão integral – uma abordagem do Evangelho que leva em conta as necessidades humanas em sua plenitude. “Corpo, alma, emoções e mente não podem ser dissociados”, diz um dos pontos do Pacto de Lausanne.

Até hoje, os participantes daquele histórico evento se confessam profundamente influenciados pelo que viram e ouviram ali. Um deles é o pastor batista René Padilla, 75 anos. Equatoriano de nascimento, pode-se dizer que ele é um cidadão da América Latina. Foi criado na Colômbia e vive há mais de 30 anos na Argentina, onde é o presidente emérito da Fundação Kairós. Conhecido como um dos mais destacados teólogos da atualidade, ele, que ajudou a criar a Fraternidade Teológica Latino-americana (FTL), tem trazido importantes contribuições para a reflexão cristã ao redor do mundo. “A nobre causa do Evangelho integral continua se estendendo”, entusiasma-se.

Dono de um vasto currículo, que inclui obras traduzidas para cinco idiomas, mestrado em teologia e doutorado em ciências bíblicas e exegese pela Universidade de Manchester, na Inglaterra, Padilla, apesar da idade, mantém uma extensa agenda. Após exercer o pastorado em igrejas locais por 15 anos, o teólogo lançou-se a outras atividades ministeriais, que incluem produção literária, ensino e participação em congressos e eventos ao redor do mundo – como a Consulta Nacional realizada pela seção Brasil da FTL no fim do ano passado, em Brasília. Ali, René Padilla atendeu a reportagem de CRISTIANISMO HOJE com uma disponibilidade e simpatia nem sempre comuns a líderes de tamanha relevância.

 

CRISTIANISMO HOJE – Passados quase 35 anos de Lausanne, o conceito de missão integral permanece o mesmo?

RENÉ PADILLA – Antes mesmo de Lausanne, o conceito de missão integral já havia surgido no cenário da Fraternidade Teológica Latino-americana. Mas Lausanne nos deu a oportunidade de expor este conceito em uma plataforma mundial. Creio que tem havido avanços significativos por parte de instituições e igrejas que hoje em dia promovem a missão integral. Cerca de 300 dessas entidades formaram a Micah Network [Rede Miquéias], cujo lema é o texto de Miquéias 6.8 – onde o Senhor diz que o que ele espera é a prática da justiça, o amor à misericórdia e a humildade. Esse é um lema que hoje em dia está fazendo mais e mais sentido ao redor do mundo. A nobre causa da missão integral está se estendendo, assim como a reflexão acerca dela.

 

Como o senhor, pessoalmente, define o conceito de missão integral?

Ela pode ser definida sob várias perspectivas. Uma delas diz que o homem é um ser não só espiritual, mas também possui as instâncias psicológica e física. Então, a missão integral tem a ver com a totalidade da vida humana e leva muito a sério as necessidades de cada uma dessas áreas – ora, ninguém pode viver sem alimento ou sem abrigo, mesmo que conheça a Deus. Falar de missão integral é falar do ser humano em todos os aspectos de sua vida individual e em sociedade. Outra perspectiva seria a de que o Deus da Criação tem interesse e soberania sobre cada aspecto de sua obra. A missão integral nos motiva a alcançar o homem na plenitude de suas necessidades, sem separar religioso ou profano, sacro ou secular. E em cada um desses aspectos da vida, somos chamados a dar glórias a Deus.

 

Que correntes teológicas têm norteado a Igreja Evangélica na América Latina?

Em termos gerais, a maior influência é exercida por uma teologia que tem dado muita ênfase à evangelização, com demasiada preocupação com o crescimento numérico – em detrimento da responsabilidade social, no campo da experiência da Igreja como uma comunidade alternativa frente à sociedade. Creio que a influência de uma teologia unilateral que valoriza a relação do crente com Deus – sem, contudo, levar em conta outros aspectos fundamentais da vida humana – tem sido muito forte no continente. Trata-se de uma teologia procedente do Norte, individualista, com muita ênfase na salvação da alma como algo para o futuro, para além da tumba.

 

O neopentecostalismo se insere nesta definição?

O neopentecostalismo é um fenômeno novo, com muita ênfase em doutrinas que deixam muito a desejar do ponto de vista dos ensinamentos da Palavra de Deus, como é o chamado Evangelho da prosperidade. Esse tipo de influência tem marcado muito a Igreja latino-americana. É preciso deixar claro que, quando falamos de missão integral, não estamos rejeitando a ênfase na relação com Deus; ao contrário, cremos que isso é fundamental. Porém, estamos dizendo que não é tudo. Pelo que ensina a Palavra de Deus, há muito mais. A salvação tem a ver com a vida presente, com a relação com o próximo. Por isso, temos que buscar maneiras de entender o Evangelho em nosso próprio contexto, levando em conta as necessidades que afetam a vida humana em nossa situação.

 

Pode-se falar que existe um pensamento teológico genuinamente latino-americano?

Eu penso que sim. A FTL tem trazido uma contribuição para o desenvolvimento teológico na América Latina. Antes da existência da entidade, praticamente o único pensamento evangélico daqui era importado. Com a Fraternidade, surgiu todo um movimento com propósito de fomentar a reflexão teológica à luz da Palavra de Deus, mas enraizada na América Latina. Creio que isso foi alcançado. Todavia, estamos nós a caminho. Há muitos aspectos que ainda não foram considerados devidamente – um deles é a ecologia, que também é parte da responsabilidade cristã. Além disso, há igrejas que consideram que defender a causa dos pobres é identificar-se com a esquerda, o que é um absurdo, pois na Bíblia muito se diz sobre a justiça social.

 

O que o senhor pensa sobre a Igreja Evangélica brasileira?

Não conheço a fundo a Igreja no Brasil, mas minha impressão é que ela mantém muitas das mesmas ênfases observadas em outros países da América Latina: valorização do crescimento numérico, pouca importância à reflexão teológica e falta de visão quanto ao impacto que a Igreja pode produzir na sociedade. É uma Igreja que necessita de muitíssimo mais capacitação para que os crentes não só professem a fé cristã, mas a levem ao terreno da prática em todas as áreas da vida. Porém, isso não é uma característica somente do Brasil, mas de toda a América Latina.

O surgimento de governos como o de Hugo Chávez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador, sinaliza uma guinada na política sul-americana, de caráter populista e autoritário. Como o senhor vê a questão?

Não estou seguro de que se possa classificar todos esses países mencionados dentro da mesma categoria. Chávez é um caso único. Creio que existe na América Latina um desejo de formar governos com um compromisso mais sério com o povo comum. Os governos em geral, em toda América Latina, têm sido dominados por uma elite – uma elite com muito poder econômico e político. Isso é o que vem acontecendo nos últimos anos, em vários países que mostram desejo de mudança. Não estou de acordo com algumas das posturas do senhor Chávez, que tem uma veia militar muito forte. Todavia, concordo com muitas das mudanças que ele tem feito na Venezuela, assim como as de Morales na Bolívia, porque entendo que são necessárias.

 

Como assim?

Pensemos o tema da propriedade dos recursos naturais. A América Latina tem uma história muito triste de exploração. Percentuais altíssimos das riquezas dos países da região saíram e continuam saindo sem contribuir com o desenvolvimento de instituições que beneficiam o povo em geral. Não é justo que, em um país tenha a riqueza que possui a Bolívia – petróleo, minerais, gás natural –, cerca de 80% da população vivam na pobreza. Lamentavelmente, o capitalismo globalizado continua seu trabalho de exploração dos países da América Latina, da África e da Ásia. Isso precisa mudar dentro de uma perspectiva cristã. Então, que haja mudanças, para que os povos latino-americanos se beneficiem de seus recursos naturais. Que esses recursos não sejam usados para benefícios de interesses particulares dos governantes corruptos ou das grandes multinacionais que predominam no campo econômico.

 

Nos anos 1970-80, a América Latina, e sobretudo o Brasil, chegaram a ser apontados como “celeiro missionário” do século 21. Hoje, essa vocação parece arrefecida. Por que isso aconteceu?

Durante minha juventude, falar de missões era falar de ações transculturais – porém, não a partir da América Latina, mas sempre encetadas por missionários que vinham da Europa ou dos Estados Unidos. Acontece que, há cerca de 30 anos, houve mesmo um despertar missionário na América Latina. Foi um momento de entusiasmo; milhares de missionários foram aos campos. Contudo, boa parte deles sem a capacitação devida. Por outro lado, faltou responsabilidade por parte dos que os enviaram. Claro, não se pode ignorar a situação econômica difícil nos países de onde saíram os missionários. Com a catástrofe econômica que abateu a Argentina no início desta década, muitas igrejas não puderam cumprir os compromissos assumidos com os obreiros. Em algumas de minhas viagens, tenho conhecido missionários latino-americanos praticamente esquecidos, que vivem em situação crítica porque as igrejas que os mandaram não se responsabilizaram devidamente.

 

Em sua visita ao Brasil, ano passado, o papa Bento XVI foi enfático ao classificar as denominações evangélicas – particularmente as de linha pentecostal e neopentecostal – como “seitas”. Ratzinger segue a linha do antecessor, João Paulo II, que durante seu longo pontificado fez diversas visitas à América Latina, sempre combatendo a influência dessas igrejas na sangria de fiéis católicos. Na sua opinião, o enfraquecimento do catolicismo na região deve-se somente ao avanço evangélico?

É evidente que a Igreja Católica tem perdido muito terreno na América Latina. E isso não se deve somente a crescimento do que o Vaticano considera como “seitas”, mas porque muita gente tem percebido uma falta de coerência no catolicismo. Veja seu casamento com o sistema, por exemplo, no apoio a governos corruptos. A falta de ética em setores do clero, situações escandalosas de homossexualidade e de pedofilia têm desprestigiado a Igreja Romana. Além do mais, a Igreja Católica tem dificuldades no recrutamento de novos sacerdotes – em boa parte, por causa da imposição do celibato, cuja obrigatoriedade não tem base bíblica. Por outro lado, na América Latina as pessoas em geral são muito religiosas. Pouca gente diz que não crê em Deus – portanto, se o católico deixa sua igreja, é porque deve estar em busca de algo espiritual que não encontra ali.

 

O que se pode esperar para o futuro da fé evangélica na América Latina?

Eu creio que esse futuro vai depender da recuperação de certas ênfases centrais na Escritura, de quanto ensinamento bíblico se fará nas igrejas. Depende também da influência de uma reflexão religiosa enraizada na situação latino-americana, uma preocupação em responder aos problemas reais da região. Na medida em que isto suceder, creio que a Igreja Evangélica da América Latina terá uma oportunidade muito grande de crescimento e especialmente de impacto na sociedade. Nós, os cristãos, somos chamados a ser sal da terra e luz do mundo. Mas isso não vai se concretizar se a Igreja continua olhando para dentro de si, preocupada com seu crescimento numérico, com sua influência nas esferas políticas para amealhar benefícios. Além disso, as igrejas precisam adotar o poder compartilhado. A liderança cristã latino-americana ainda é dada ao caudilhismo. Onde há uma liderança piramidal, hierárquica, não se pode esperar muito do futuro.

 

Qual tem sido a atuação da Fundação Kairós?

A Fundação Kairós, em certo sentido, é uma filha da Fraternidade Teológica Latino-americana. Alguns dos fundadores da FTL foram também os fundadores da Kairós. Temos tratado de prover ferramentas para a ação evangélica. Também temos um departamento voltado ao assessoramento de igrejas locais, sempre encorajando-as a praticar a missão integral, além de um setor de ministérios comunitários. Além disso, desenvolvemos um programa de educação teológica baseado em quatro áreas: igreja, sociedade, trabalho e família. Dentro dessas áreas, tratamos de ajudar os estudantes a pensar teologicamente e a relacionar a teologia com a vida prática. Esse é um projeto que tem nos dado muitas satisfações. Começamos com um programa voltado para profissionais de áreas específicas, mas com o tempo, surgiu o que chamamos de Centro de Estudos Teológicos Interdisciplinares, em nível básico, com um material mais simplificado e voltado para gente que não tem preparação acadêmica.

 

O senhor tem exercido o pastorado ou dedica-se a outras atividades ministeriais?

Por quinze anos, exerci o pastorado em igrejas locais – doze em uma, três em outra. Gosto do pastorado, mas não tenho podido seguir nisso porque minhas tarefas com a Kairós têm me absorvido. Tenho tido muitíssima responsabilidade administrativa, o que me rouba tempo para outras coisas. Venho me dedicando também ao ensino, através de cursos, seminários e oficinas, não apenas na América Latina, como nos Estados Unidos, Canadá e Europa. Mas um trabalho que me traz muita satisfação é a produção literária. Tenho conseguido desenvolver uma editora que hoje conta com mais de 100 títulos, e sinto-me satisfeito por haver ajudado muitos jovens que agora estão escrevendo e dedicando bastante tempo a isso. Passo muito tempo corrigindo manuscritos e tratando de assegurar que as pessoas compreendam o que lêem. E também estou trabalhando em um livro, cujo título provisório é Discipulado para toda a vida. Na verdade, tenho muitas notas, rascunhos e projetos que nunca consegui levar adiante por falta de tempo. Mas agora assumi compromisso formal com uma editora e pretendo concluir a obra ainda em 2008.

 

E quais são os próximos projetos da Fraternidade Teológica Latino-americana?

Há um evento grandioso e que tem requerido muito trabalho por parte dos líderes da FTL. É o 5º Congresso Latino-americano de Evangelização – o Clade V. O congresso vai coincidir com a celebração dos 100 anos da grande Conferência Missionária de Edimburgo, realizada na Escócia em 1910. Em vários países da América Latina, as pessoas já estão se preparando para assistir a este encontro, que vai acontecer em fins de junho e início de julho de 2010, na Costa Rica. Eu fui o responsável pelos programas do Clade III e do Clade IV, e sei por experiência que é preciso muita preparação e esforço. (Colaborou Carlinhos Veiga)


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