Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
O Brasil de várias cores
Uma pesquisa da USP revela que o Brasil não é um país racista, mas sim, um país onde existe racismo
Por Diana Gilli
Nascemos cafuzos, caboclos, negros, brancos, mamelucos e índios. Somos das serras de Minas Gerais, as praias de Pernambuco, nos pampas do sul, nos Igarapés da Amazônia, enfim, multicores, um povo chamado brasileiro. Por toda essa diversidade, o Brasil deveria ser um dos países que mais respeita o que há de mais precioso em Constituições de diferentes democracias: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Mas, na prática, isso não é o que acontece. Uma pesquisa realizada em 2009, pela Universidade de São Paulo (USP) mostrou que 97% da população não é racista, mas, por outro lado, 98% disseram conhecer pessoas que manifestavam algum tipo de discriminação racial.
Para o país que foi o último das Américas a abolir a escravidão em 1888, o tema em questão é ainda difícil de ser abordado. Aqui, o debate sobre racismo é sempre atual, com todos os seus paradoxos e mitos, como o da democracia racial.
Para Diná da Silva Branchini, Mestre em Ciências da Religião e Coordenadora do Ministério de Ações Afirmativas Afrodescendentes, da Igreja Metodista, em São Paulo, a questão é complexa porque “o racismo está entranhado em nossa cultura, nas instituições e na formação das pessoas. Ele faz parte da constituição de nossa sociedade, o que torna difícil poder afirmar que o país está menos ou mais racista”.
Enquanto que a pesquisa da USP revela que a maioria da população não é racista, pela contramão, Diná afirma que atualmente uma das maiores dificuldades que o país enfrenta é negar ser racista. “No Brasil, o racismo foi tirado debaixo do tapete e a sociedade está tentando entender que sujeira é esta. Por ser algo subjetivo, é difícil responder objetivamente se houve ou não uma diminuição”, afirma ela.
Mesmo assim, Branchini acredita que houve avanço com a declaração feita pelo governo em 2001, de que o Brasil era um país racista. Segundo ela, desde lá, o Estado brasileiro tem enfrentado esta questão por meio de políticas de ações afirmativas, com o intuito de diminuir as diferenças sociais reveladoras do racismo institucionalizado na sociedade. Para Diná, no entanto, isto tem gerado críticas e polêmicas que muitas vezes expressam o racismo camuflado em argumentos aparentemente de interesse social em relação à população negra.“O racismo está mais exposto, no entanto ainda não dá para dizer que o país está menos racista”, afirma.
Segundo Dionária da Silva, pedagoga e militante do Movimento Negro, em Jequié, BA, a questão de o racismo ser velado é o que mais dificulta o combate a ele. No que diz respeito aos negros, por exemplo, existem nos movimentos os intelectuais empenhados no combate ao racismo, mas o racismo não existe às claras. “A gente vai percebendo como o racismo acontece, seja no contexto educacional, seja na área da saúde, e muitas vezes a própria população negra acaba não percebendo e isso contribui para o racismo se reproduzir”, explica.
Mesmo com essa realidade, Dionária, diz que a luta de diferentes entidades negras de todo o Brasil, a intervenção de pensadores negros, têm conseguido ampliar o nível da consciência negra. Em sua leitura, as pessoas estão começando a sua identidade de negro. De acordo com ela, isso é fruto dos movimentos, dos pensadores e das políticas públicas, seja de educação, saúde ou moradia. Estas iniciativas tentam reparar os resquícios que ficaram do período da escravidão no país.
Índios também sofrem
No início, eram os indígenas. Com a chegada dos colonizadores, vieram também os missionários de várias denominações religiosas. Aí, os militares chegaram com a justificativa de proteger a fronteira norte do Brasil, uma região de limites tênues em meio à floresta amazônica. Sabe-se que ninguém permanece igual ao que era antes após o contato com uma outra cultura. O norte do Brasil não é diferente e o contato entre índios, religiosos e as forças armadas continua produzindo desdobramentos.
Em entrevista ao “Repórter Brasil”, o índio Josimar Ramos Marinho, da aldeia Bukurã Baátá, norte do Amazonas, revela que já sofreu com o racismo só por ser nativo. “Tinha companheiros de farda pouco inteligentes que comentavam que o indígena era feio, preguiçoso e alcoólatra. Um fato que presenciei numa missão de um dos pelotões foi o de um militar dizendo que a pior coisa do mundo era conversar com indígena, ainda mais quando este estivesse alcoolizado”, explica.
Segundo Florêncio Almeida Vaz, ativista do movimento indígena na Amazônia, franciscano, formado em Ciências Sociais pela UFRJ, “a situação mostra mais do que desrespeito, mostra um gritante e inaceitável racismo praticado por técnicos do Estado, parlamentares governantes. As últimas ações mais radicais dos indígenas mostram que a paciência se esgotou”, afirma ele em artigo (cedido para o público) publicado em seu blog, onde aborda a antropologia social.
Vaz também afirma que os principais agentes responsáveis por esse crime de racismo contra os indígenas têm nome: o próprio Governo Federal e as instituições do Estado encarregadas mais diretamente de cuidar da assistência aos índios. “Como racismo estamos considerando preconceito e comportamento discriminador baseado em uma pretensa inferioridade biológica, cultural e moral de grupos considerados como uma "raça". Isso pode parecer exagero a primeira vista. Em geral, estamos habituados a considerar apenas a população negra como vítima de racismo. Como se os índios não constituíssem também uma raça”, explica.
Ciganos e judeus
“Eles se fingem de católicos, com cruzes e santinhos, tudo hipocrisia. Estou apavorado com o progresso dessa gente e revoltado com a displicência das autoridades, não só do Brasil como das Américas”, escreveu um cidadão comum ao Deops avisando sobre a presença de judeus no país. Detalhe: o ano da denúncia é 1947, dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e da derrocada do nazismo e do Estado Novo.
De acordo com a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da USP, autora de “Preconceito racial no Brasil Colônia: cristãos-novos”, o fato de não observarmos em nosso cotidiano agressões físicas e públicas contra negros, judeus ou ciganos não quer dizer que não aja racismo no Brasil, que pode variar desde o mais sutil sentimento de desconfiança e de desprezo até o mais violento ato de hostilidade física.
“A existência em São Paulo de uma Delegacia de Crimes Raciais, de o Direito brasileiro condenar e repudiar a prática do racismo e de constatarmos, cada vez mais, a adoção de cotas para negros nas universidades demonstra que a nossa realidade, ainda que expressiva do fenômeno da mestiçagem, não é tão cordial assim. Temos o diagnóstico, mas não chegamos ainda à profilaxia adequada, pontual”, explica Tucci.
Para o colunista político e jornalista Mauro Santayana, em São Paulo, e no Rio Grande do Sul, jovens se organizam, defendendo a “supremacia da raça branca”. Segundo ele, foi sob essa “arrogante e presumida superioridade que o nazismo cresceu e contaminou a Europa. Se não fosse a brava resistência de uma minoria de patriotas nos países ocupados, e a ação decisiva dos aliados, entre os quais nós, brasileiros, estaríamos todos submetidos ao império germânico mundial”.
Políticas Públicas
O livro "Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas 120 anos após a abolição", demonstra "que a construção da questão racial como campo de intervenção política, no Brasil, ainda está por ser concluída".
"As chamadas políticas públicas, mediante as quais o Estado se faz presente, consolidando direitos, desfazendo iniqüidades, fortalecendo a coesão social e mesmo obstruindo ciclos viciosos de reprodução de desigualdades, parecem ainda ausentes no caso do problema racial. De uma forma trágica e até emblemática, face a esse problema, onde as políticas públicas mais se fazem necessárias, é lá que o Estado se omite e essas políticas escasseiam", afirma o organizador Mário Theodoro, no capítulo conclusivo da obra.
Mesmo assim, parece ter nascido um instrumento que pode ajudar na questão. Depois de tramitar por quase uma década pelas duas casas legislativas do país e ter sido sancionando pelo presidente Lula, o Estatuto da Igualdade Racial passou a vigorar no mês de outubro. O Estatuto estabelece que discriminação é toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica. Essas ações têm como objetivo restringir o reconhecimento de direitos humanos e liberdades fundamentais em campos político, econômico, social e cultural aos afrodescendentes.
O estatuto estabelece ainda ações afirmativas (elaborados pelo Estado ou iniciativa privada) para a correção das desigualdades, com a promoção de oportunidades para reparar desigualdades presentes durante o processo de formação social do país. A medida busca eliminar a discriminação em todos os setores, como na educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, entre outros.
O texto institui, por exemplo, pena de até cinco anos para quem impedir, por preconceito, a promoção funcional de negros. O estatuto também passa a garantir a participação dos afrodescendentes em instâncias de deliberação vinculadas ao Poder Público. O artigo que previa a implantação de cotas em universidades públicas foi retirado do projeto pelo Senado.