Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Multiculturalismo

NELSON ASCHER

Paradoxos do multiculturalismo

A cultura de cada grupo, influenciada por sua história, pode e deve ser comparada às demais

MULTICULTURALISMO é a doutrina segundo a qual, malgrado cada grupo humano ter sua cultura individual, todas se equivalem. Essa idéia contrapõe-se à que prevaleceu durante a maior parte da história. O normal outrora era cada grupo considerar a si e à sua cultura superiores aos restantes: somente os membros de nossa tribo eram de fato gente, falavam uma língua que era mais que um balbucio, veneravam o(s) verdadeiro(s) deus(es) e se comportavam de maneira civilizada. Os demais não passavam de bárbaros ou selvagens.
A visão multiculturalista se arraigou como uma espécie de fundamento e decorrência do anti-racismo. A equação soava simples e auto-evidente: se nenhum grupo ou etnia (o que antigamente se chamava de "raça") é biológica, neurológica e psicologicamente melhor nem pior, sua cultura, manifestação de sua humanidade essencial, tampouco deve sê-lo. E, se todas as culturas se equivalem, isso se aplica também aos inúmeros grupos ou etnias que as criaram.
Tal relativismo cultural antecede os movimentos anti-racistas que se difundiram após a Segunda Guerra. Eles se originam, na virada dos século 19/ 20, da convergência de duas disciplinas recentes: a antropologia e a lingüística. Antes de os lingüistas principiarem a estudar comparativamente as línguas, a crença na superioridade desta ou daquela era tão corriqueira quanto sua contrapartida racial.
Os especialistas, no entanto, comprovaram que qualquer idioma, mesmo aqueles usados pelos povos mais materialmente primitivos, era tão complexo em termos estruturais quanto qualquer outro. A gramática e sintaxe do inuit falado pelos esquimós ou da língua de um grupo de caçadores da Amazônia ou Nova Guiné nada fica a dever às do grego clássico ou do alemão.
Os antropólogos que se dedicaram ao trabalho de campo e aprenderam os idiomas nativos das Américas ou Austrália constataram, paralelamente, que essa complexidade não se restringia ao campo da fala, mas se estendia, isto sim, a instituições sociais como as relativas ao parentesco, à religião, aos rituais, aos hábitos alimentares. A percepção, ademais, de que o estado das tribos estudadas pressupunha uma prolongada trajetória de tentativas e erros que resultaram numa adaptação maximizada a seu meio ambiente levou os investigadores a banir a palavra "primitivo" da descrição deste ou daquele segmento da humanidade.
E, enfim, para se engajar mais ativamente na luta contra o racismo, não satisfeito com demonstrações teóricas, o multiculturalismo edificou um sistema de valores que se opõe ao de seus adversários. Se os racistas pregavam a pureza racial, cultural e lingüística, o multiculturalismo vê todo convívio como algo positivo e desejável. Se aqueles reivindicavam a separação e o distanciamento, este aspira à justaposição espacial de todas as culturas, embora seus adeptos a rigor se dividam entre os que propõem a mescla, a mestiçagem e os que lutam pela preservação, em nome da "autenticidade", sobretudo das culturas minoritárias e "ameaçadas" seja pelas majoritárias, seja pela globalização.
Nem é aleatória essa divisão, pois o que se verifica na prática é que algumas culturas estão mais abertas para as outras do que as demais. Quer se admita, quer não, o que acontece é que algumas têm um viés universalista que transparece no seu interesse e curiosidade onívoros, enquanto outras, auto-satisfeitas e fechadas em si mesmas, preferem o suicídio à conspurcação. Para ficarmos num exemplo que beira o caricatural, que bem poderia advir da síntese de uma cultura secularista e religiosamente tolerante com outra, como a dos astecas, em cujo centro se encontra uma religião fundamentada no sacrifício humano?
Mas como é que culturas que, devido à sua humanidade comum, deveriam reagir de modo semelhante diante do mesmo desafio acabam se comportando de forma tão diferente? É que talvez o paralelo entre cultura e língua esteja errado. A linguagem está provavelmente mais próxima das características biológicas que definem um grupo, características de base que apenas podem ser alteradas, aqui e ali, lenta e quantitativamente.
Já a cultura seria um fenômeno de segundo grau, como, por exemplo, a literatura. Qualquer idioma pode produzir grandes autores, mas alguns o fazem mais e melhor. Na cultura, como na literatura, a história, transcendendo o cumulativo, opera transformativamente. Tendo em vista que a cultura de cada grupo é influenciada por sua história, ela não só pode, como deve ser comparada com as restantes. Sem falsas equivalências.


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