Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013
mulheres em celas masculinas
Violência sexual contra crianças: Disque 100 ou entre em contato com Conselho Tutelar de sua cidade
Violência contra a Mulher: procure o Mínistério Público (em sua sede própria ou no fórum ) ou Pastoral Carcerária de sua cidade
Presas são vítimas de abuso em 5 Estados, diz relatório
Há casos de detentas que dividem celas com travestis e adolescentes homens
Documento preparado por entidades de defesa das mulheres foi entregue à OEA; na Bahia, duas ficaram grávidas dentro da cadeia
KLEBER TOMAZ
ROGÉRIO PAGNAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Fonte: Jornal Folha de S.Paulo, 26 de novembro de 2007
A violência sexual sofrida por uma jovem presa numa cela com 20 homens em Abaetetuba (137 km de Belém) não é um fato isolado e exclusivo do Pará.
Um relatório produzido por entidades brasileiras de defesa das mulheres e entregue à OEA (Organização dos Estados Americanos) em março deste ano aponta situações de abuso e violência contra presas em pelo menos cinco Estados. O Pará não foi citado na época.
No Rio Grande do Norte e na Bahia, as mulheres têm de dividir a cela com travestis e adolescentes homens. O documento relata que, em Mato Grosso do Sul, onde há uma cadeia mista na cidade de Amambai (porém com celas separadas por sexo), um funcionário manteve relações sexuais com uma presa dentro da cela, na presença de dez mulheres.
Há ainda casos de cadeias femininas em que só há funcionários do sexo masculino.
O relatório cita problemas em outros dois Estados: Rio e Pernambuco. Apesar de não estar no relatório enviado à OEA, em São Paulo há ao menos uma cadeia mista (homens e mulheres na mesma unidade, em celas separadas), em Ubatuba.
Além da Pastoral Carcerária Nacional, participaram da elaboração do relatório o Centro de Justiça e Direito Internacional e o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas.
Os dados do documento são de 2006, mas, de acordo com a advogada Luciana Zaffalon Cardoso, coordenadora do grupo interministerial criado para discutir políticas públicas para mulheres presas, a situação encontrada nos presídios continua inalterada. "Não se observou nenhuma mudança ainda em relação às denúncias."
As entidades relatam que as detentas são às vezes obrigadas a fazer sexo com os próprios presos ou com os funcionários.
Assim como a jovem do Pará que disse ter feito sexo com os presos em troca de comida, as detentas violentadas também trocam o corpo por benefícios, segundo o documento. "As mulheres que sofrem violência sexual ou trocam relações sexuais por benefícios ou privilégios não denunciam os agressores por medo, uma vez que vão seguir sob a tutela de seus algozes", diz trecho do relatório.
O texto sugere que os problemas podem não ser limitados aos cinco Estados, ao citar a falta de dados oficiais "sobre quantas e quais são as unidades prisionais que ainda possibilitam essa convivência". E destaca que as presas não estão livres de abuso mesmo onde há a separação de sexo por celas.
Em Paulo Afonso (BA), por exemplo, duas presas ficaram grávidas dentro da cadeia (onde não são permitidas visitas íntimas). Lá, elas são trancadas com adolescentes infratores no mesmo pavilhão -que é separado do espaço dos outros presos por uma grade. Há um carcereiro para 80 pessoas presas.
O delegado titular de Paulo Afonso, Idelbrando Alves da Silva, 46, afirma que, mesmo com a separação, há poucas semanas um preso e uma detenta foram flagrados fazendo sexo na grade. "A presa passou a noite algemada para não fazer mais isso."
A divisão foi construída há seis meses. Antes, ficavam todos no mesmo pavilhão -mulheres e adolescentes no pátio; homens adultos, nas celas.
Na cadeia de Mossoró (RN), travestis são presos com mulheres pois não são aceitos pelos presos. E em Mesquita (RJ) e Recife não há carcereiras.
A Defensoria Pública de São Paulo diz que não é rara a necessidade de intervenção do órgão para remover detentas em unidades destinadas para homens. Para os defensores, uma das preocupações é ocorrer rebeliões, e, no tumulto, as mulheres serem violentadas.
Moradores sabiam que menina estava em cela de homens no Pará
Enviada especial da Folha a Belém (PA)
MARLENE BERGAMO
Repórter-fotográfica da Folha
Da rua em frente à delegacia de polícia de Abaetetuba, 130 km de Belém, tem-se visão ampla da carceragem, um galpão de 80 metros quadrados, três banheiros minúsculos e uma cela de segurança, separados da cidade livre apenas por um portão de grades enferrujadas.
Foi lá que, durante pelo menos 20 dias, uma menina de 15 anos, L., acusada de tentativa de furto, permaneceu encarcerada com mais de 30 homens, submetida a abusos sexuais, violência e estupros seguidos, que só tiveram fim no dia 15.
"Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada", disse uma mulher na delegacia, sexta-feira à noite.
"Antes de comer, os presos se serviam dela", lembra inflamada outra mulher, falando alto bem em frente à sala do delegado de plantão. Refere-se ao fato de os presos obrigarem a menina a praticar sexo como condição para lhe darem alimento.
"Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar", afirma outra.
Nos bastidores do governo federal, em Brasília, existe a convicção de que o caso configura-se em uma das mais graves violações dos direitos humanos, uma ofensa ao Estatuto da Criança e do Adolescente, além de ferir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
O mais constrangedor, porém, é que todo esse horror foi patrocinado por instituição do Estado (a Polícia Civil) comandada pela petista Ana Júlia Carepa, governadora do Pará.
L. não poderia estar no sistema penitenciário, menos ainda sob acusação de tentativa de furto e, pior, presa entre homens. "Só se pode internar um adolescente por violência, grave ameaça ou prática reiterada de delito grave, o que não era o caso", diz a advogada Márcia Ustra Soares, 42, da subsecretaria de promoção dos direitos da Criança e do Adolescente da Presidência da República.
Os presos até que tentaram camuflar a presença daquele corpo estranho no meio de tantos homens. "Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas", diz a mãe biológica. "Cortaram o cabelo dela com um terçado [facão], para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha." Mas não funcionou.
L. continuou vestindo as roupas que usava ao ser presa --sainha curta e blusinha que deixava evidentes os seios adolescentes. Seu corpo mirrado, com menos de 1,40 m, tampouco permitia que ela fosse enfiada nas roupas de seus companheiros de cela.
A carceragem onde a menina ficou trancada agora está quase vazia --os homens presos que conviveram com ela foram todos removidos para penitenciárias próximas. Apenas um jovem de 19 anos, Landrisson André Santos Mauegi, acusado de tentativa de furto de uma bicicleta, estava detido no local na sexta-feira (ele foi parar lá depois da libertação de L.). A mãe de Landrisson, Maria Santos, 75, vai ao local todos os dias para levar sanduíches, cigarros e conforto ao seu caçula. Nem precisa passar pelo carcereiro. Basta esticar o braço.
Se era tão flagrante a identidade feminina e quase infantil de L., por que ninguém denunciou antes? "Medo de morrer. Aqui todo mundo tem medo", diz a tia de um dos presos transferidos. "Se a delegada põe uma menina na cela com os homens, e a juíza mantém ela lá, quem sou eu pra denunciar. Aliás, denunciar para quem?"
A delegada a que se refere a mulher é Flávia Verônica Pereira, responsável pela prisão em flagrante de L. A juíza é Clarice Maria de Andrade.
No dia 14, finalmente, o Conselho Tutelar de Abaetetuba recebeu uma denúncia. Anônima. A delegada foi afastada de suas funções no dia 20 e a juíza está sendo investigada pela Corregedoria de Justiça. A Folha tentou sem sucesso contatar ambas por telefone na sexta.