Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

maoistas

Jean Birnbaum

O dispositivo é familiar, no entanto algo destoa em relação aos comícios tradicionais. Sim, estamos na Rue des Ecoles em Paris, em pleno Quartier Latin. Como em toda reunião de esquerda digna desse nome, a tribuna está coberta por um tecido vermelho e tem no alto um alto-falante rouco -que a exigüidade da sala torna perfeitamente inútil. Sempre segundo o costume, o orador atrasa. Quando finalmente aparece, com seus óculos imensos, colete listrado e calça de veludo, todos prendem a respiração, com o olhar fixo naquelas longas mãos juvenis que não terminam de acariciar o texto a ser proferido.

Até aqui, tudo muito banal, dirão. Mas a cena não se desenrola em Maio de 1968, e sim em dezembro de 2007, e o homem do dia chama-se Jean-Claude Milner, tem 66 anos, é um lingüista brilhante, autor de ensaios de estilo implacável e arrasador, o último dos quais se intitula "Le Juif de Savoir" (O sábio judeu, editado na França pela ed. Grasset, 2006). Há 40 anos esse teórico glacial intimidava seus camaradas da Esquerda Proletária (Gauche Prolétarienne, ou GP na sigla em francês), principal organização maoísta na França no pós-68.

Hoje ele se exprime diante dos fiéis no Instituto de Estudos Levinassianos, criado em 2000 ao redor de seu amigo Benny Lévy, antigo chefe da GP. Desde a morte deste em Jerusalém em 2003, Milner assumiu o lugar do mestre no pequeno instituto. Naquela noite, o silêncio é impecável quando, com uma voz soberana e fria, o gramático enuncia seu tema: "Sobre as artimanhas do universal, estudos de caso: Maio de 68 e o esquerdismo".

  
Imagem de arquivo mostra cena dos distúrbios de maio de 1968 em París

Durante uma hora, Milner cita os bons autores (Lévi-Strauss, Foucault,
Sartre) para examinar o "encontro" entre Maio de 68 e o esquerdismo francês. De um lado, ele explica, Maio de 68 coloca a questão do presente: "Maio de 68 diz: a revolução não é para os outros, para mais tarde. É para nós, aqui e agora". De outro lado, ele prossegue, o esquerdismo redescobre a questão da "História absoluta", com H maiúsculo. Na intersecção dos dois, existe a Esquerda Proletária, que tenta conjugar o espírito de Maio e a "revolução em si" inventando uma política do absoluto. Ora, não é por acaso, conclui o orador, que essa epopéia se confunda com os nomes de Benny Lévy, de Robert Linhart, autor de um famoso livro intitulado "L'Etabli" (O estabelecido, ed. de Minuit, 1978), ou ainda de Pierre Goldman, rebelde e gângster assassinado em 1979: "Por intermédio da Esquerda Proletária, o esquerdismo francês também é uma história judia", declara Milner.

É uma piada? Em todo caso, na platéia ninguém ri. Ao contrário, Jean-Claude Milner pode contemplar a expressão exaltada de seus ouvintes, alguns dos quais usam o quipá. Dentre eles, só um punhado conheceu a época das manifestações e das batalhas organizadas, antes de viver os dias seguintes que decepcionam, as madrugadas esverdeadas. Mas todos sabem o essencial: quando a esperança radical desmorona, resta apenas o desejo de infinito; quando a história não cumpre suas promessas, o absoluto procura outro nome.

Maio de 1968 - maio de 2008, da política à espiritualidade: na grande família dos maoístas franceses, um certo número seguiu esse caminho. Sejam eles religiosos ou continuem se dizendo ateus, muitos passaram de uma cena marxista, onde a palavra que conta é "revolução", para uma cena metafísica, onde só se fala em "conversão". De cara, é o credo monoteísta que constitui o verdadeiro horizonte da radicalidade: de Mao a são Paulo, para os filósofos Guy Lardreau, Bernard Sichère ou Alain Badiou; de Mao a Maomé, para seu camarada Christian Jambet, que aprendeu persa para mergulhar no estudo dos movimentos extremos no islã xiita; e de Mao a Moisés, para outros.

Ou melhor, "de Moisés a Moisés, passando por Mao", como explicou o próprio Benny Lévy, que teria encarnado, melhor que ninguém, essa passagem de um absoluto ao outro. "Muito cedo eu encontrei o Todo-Poderoso. No texto de Lênin, que foi tema de meu primeiro ano na Ecole Normale Supérieure (Escola Normal Superior), eu fichei os 36 volumes das 'Obras de Moscou'", ele escreveu.

Líder carismático da Esquerda Proletária, ele torna-se em seguida o secretário pessoal de Sartre e volta-se com ele para o estudo dos textos judeus, em meados dos anos 70, deixando os 36 tomos de Lênin pelos 20 volumes do Talmude. "Embaixo dos paralelepípedos, a praia!", haviam lançado os rebeldes de Maio de 68. "E se embaixo dos paralelepípedos da política se escondesse a praia da teologia?", retificou Lévy em 2002 em "Le Meurtre du Pasteur" (O assassinato do pastor, ed. Grasset-Verdier). Publicado na coleção Figures dirigida por Bernard-Henri Lévy, essa obra tinha como subtítulo "Crítica da visão política do mundo", como que para homologar o divórcio entre a política e o absoluto: não, nem tudo é política; não, a condição humana não é um problema cuja solução estaria na política.

Por essa amarga constatação, os filhos do maoísmo francês pagaram um alto preço. Um quarto de século antes de "Le Meurtre du Pasteur", aliás, outro livro já havia feito o inventário: publicado na mesma coleção, co-assinado por dois "ex" da GP, Guy Lardreau e Christian Jambet, "L'Ange" (O anjo) apareceu em 1976, ano da morte de Mao, no momento em que se afirmava um certo discurso antitotalitário. E se com freqüência consideramos esse ensaio como o manifesto dos "novos filósofos", é que "L'Ange" dizia adeus aos anos de militância, vinha encerrar de vez os anos "68": "Havíamos provado uma conversão (...). Acreditávamos ter chegado ao fundo: sabe esses tempos em que tudo faz falta, noites inteiras passadas a chorar baixinho, com poucas lágrimas, sobre o passado sem remédio (...). Nós nos retiramos para o deserto", notavam Lardreau e Jambet nesse "guia dos desgarrados", onde o descanso do engajamento político desembarcava em outra rebelião, esta espiritual.

Tudo isso para isto? No lugar da revolução cultural chinesa, o retorno à antiga "revolução cristã"? Lá onde Mao martelava que "o olho do camponês vê justamente", tratava-se simplesmente de afirmar, como fizeram os dois filósofos, zombando, que "o olho do padre vê justamente"? Seria fácil demais, responde hoje Guy Lardreau. No início dos anos 1970, esse "normalista" era um dos chefes da Esquerda Proletária, ao mesmo tempo cuidando do jornal da organização, "La Cause du Peuple" (A Causa do Povo, do qual Sartre era diretor), e sua seção de cinema (onde trabalhou com Jean-Luc Godard). Depois de seu percurso militante, tendo Paris se tornado "intolerável" para ele, Lardreau instalou-se em Dijon.

Professor de classe preparatória (2º ano), agora ele mora em um hotel particular meio depauperado, reformado como gabinete filosófico. Ao redor de sua mesa, as obras completas de Hegel e de Tomás de Aquino; sobre ela, um velho cortador de papel, algumas notas rabiscadas. E os Salmos. Fascinado pelo Oriente cristão, hoje Lardreau tem uma relação muito forte com "uma certa forma de rigor que chamamos de teologia". E com a oração? "Eu lhe responderei como Jesus: não sei o que é orar. Você é bem suficiente ao dizer 'orar'...", ele lança com um sorriso doloroso.

Sua mãe foi professora primária. Seu pai ensinava matemática no colégio. Nos anos 1930, este fora monarquista da Ação Francesa. Depois da guerra, "sobre a base da resistência", ele votou nos comunistas, permanecendo ao mesmo tempo ateu e "profundamente católico", explica Guy Lardreau. Ele mesmo, enquanto define o cristianismo como "a maior revolução da história da alma", recusa que se fale sobre seu percurso como um retorno.

"Essa idéia que fez o sucesso abominável de 'L'Ange', pelo qual ainda me mordo os dedos", ele confia. "O mal-entendido foi completo: leram o livro como uma espécie de queixa hipócrita, cobrindo com uma dignidade espiritual um puro e simples retorno à casa paterna. Mas para mim era outra coisa: eu havia investido uma esperança máxima em um campo em que ela se mostrou mal colocada. Então foi preciso tentar compreender o que havíamos buscado, a partir do momento em que isso não se soletrava mais com as palavras do discurso político. O que nós chamamos de 'o Anjo' era uma figura tal que fez na história uma ruptura absoluta."

Apesar de tudo, manter o horizonte de outro mundo possível; a toda força, perpetuar a esperança de um "além" para o nosso tempo: no rastro de Maio de 68, cada um à sua maneira, vários antigos maoístas tentaram aceitar esse desafio. Ir ao encontro deles não é somente espanar o retrato de uma geração no espelho de suas ilusões passadas. É também reconhecer, mesmo hoje, um fervor e uma virulência intactos. Uma sede de absoluto, sobretudo, que diz muito sobre nossa época, quando a questão religiosa voltou a ser central: "Quando a política está em baixa, a teologia está em alta. Quando o profano recua, o sagrado faz sua revanche. Quando a história se retarda, a eternidade alça vôo", lamentou recentemente o filósofo trotskista Daniel Bensaïd em um panfleto intitulado "Un nouveau théologien, B.-H. Lévy" (ed. Lignes).

Desse grande movimento de gangorra, os "marginais" do maoísmo francês são perfeitas testemunhas. Melhor: eles estão, mais uma vez, na vanguarda.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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