Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Livrinho do coração

 

   

Livreto evangelístico publicado até a década de 1970 influenciou várias gerações quanto ao conceito de salvação e da missão do(a) cristão(ã) no mundo. Leia aqui.

Mesmo que você seja jovem, é possível que você já tenha visto um livrinho com um coração desenhado na capa, talvez no fundo de alguma gaveta, no meio da coleção de revistas velhas de seu pai ou entre os seus próprios guardados. Saiba que durante muitos anos, esse livreto evangelístico foi bastante popular nas casas de evangélicos de diversas denominações, tendo sido editado continuamente pela Imprensa Metodista até o ano de 1970. Certamente ele influenciou a visão de mundo de muitos metodistas ao longo dos anos. Suas páginas ilustradas por anjos, demônios e outras figuras simbólicas povoaram o imaginário religioso e ficaram gravadas na memória de várias gerações de metodistas. Por isso, o Livrinho do Coração foi um dos temas abordados pelo pastor Helmut Renders, professor da Faculdade de Teologia da Universidade, em palestra sobre "Espiritualidade, imaginário sócio-religioso e realidade", realizada durante as comemorações do centenário do Credo Social Metodista, em maio (outra parte dessa palestra, sobre as metáforas do coração, você encontra no Expositor de julho).

 

 O Livrinho do Coração traz o desenho de um coração humano que, quando se afasta de Deus, fica cheio de pecados, representados por figuras de animais (por exemplo: o desenho do pavão representando o orgulho; a tartaruga, a preguiça). Ao centro desse coração pecaminoso, destaca-se a figura de Satanás, devidamente "equipado" com tridente, chifres e rabo.  

 Quando o Espírito Santo (representado pela figura da pomba) entra no coração, as figuras do mal batem em retirada, mas ficam à espreita, do lado de fora, esperando apenas um mínimo descuido para retornar.

 

O editor desse livrinho que ficou famoso em todo o meio evangélico era (vejam só!) um missionário católico alemão, Johannes Gossner (1773-1858). A influência católica se vê, por exemplo na lista dos "sete pecados capitais" citados no texto: orgulho, impureza, glutonaria, preguiça, inveja, ira e mesquinhez. O livro foi publicado na Alemanha em 1812 e chegou ao Brasil em 1914, tendo sido reimpresso inúmeras vezes até 1970. Durante todos esses anos, ele não sofreu alterações ou atualização da mensagem. Em todo o mundo, contam-se vinte e duas traduções do texto em diferentes idiomas. O tradutor para a língua portuguesa é um pastor presbiteriano, o dinamarquês André Jensen.

Um mundo ameaçador

A mensagem, originalmente elaborada no contexto das guerras napoleônicas e traduzida para o português no primeiro ano da I Guerra Mundial, trazia a visão de um mundo ameaçador. O crente, para se manter fiel à Palavra de Deus, deveria manter-se afastado do mundo, evitando se contaminar pela sua malignidade. Diz um trecho do livro: "Tudo ao redor de nós, riquezas, fama, prazeres, sim, tudo é transitório e nada... O próprio mundo perecerá com toda a sua glória, mas Deus permanecerá para sempre como permanecerá aquele em cujo coração Cristo reinar".

O professor Helmut Renders explica que quando o livro foi editado pela primeira vez, a Bavária estava envolvida ao lado de Napoleão no seu ataque à Rússia, o que resultou na morte de trinta mil soldados bávaros. O rei bávaro, José Maximiliano IV (1799-1825), duas vezes casado com uma protestante, tinha tolerado, pela primeira vez, luteranos na capital Munique e profanado um grande número de igrejas católicas. A "volta para dentro" proposta por Johannes Gossner,  ou seja, a sua visão do mundo e a estratégia de auto-preservação de seu rebanho deve ser compreendida nesse contexto.  Para Gossner, que se tornaria luterano em 1826, anos depois da publicação do livro, o mundo está em pedaços, as instituições religiosas estão sendo atacadas e, portanto, o coração do ser humano é o único lugar de liberdade. Renders destaca ainda que, embora o livro sido editado em 1812, ele tem raízes ainda mais antigas. "Ele é uma mesclagem entre o pré-moderno - um mundo dominado por anjos e demônios - e o moderno - o mundo construído por seres humanos cujo projeto de vida é considerado uma ameaça à vida cristã", afirma ele.

Helmut Renders explica que, simbolicamente falando, as virtudes destacadas pelo livro (fé, amor, esperança, coragem, justiça, temperança...) mantêm os demônios "do mundo" para fora do coração cristão, mas não conseguem entrar e transformar o mundo. "Quando se usa essas estampas em 1812 é uma coisa", diz Renders. "Mas o que significa seu uso entre 1914 e 1970 no Brasil e em todo o mundo?", questiona o professor. Ele mesmo responde: "significa uma descrição da relação indivíduo-mundo que não contempla o surgimento do estado democrático e sua idéia completamente nova de cidadãos com direito de voto, de participação na sociedade etc."

Dessa maneira, a relação com o mundo segue o princípio da omissão.. "Limita-se, ao máximo possível, a possibilidade de depender ou se acostumar a um estilo de vida que pode se comprometer com o erro ou corromper o ser centralizado em Jesus Cristo e o Evangelho", diz o professor. Não há espaço para um imaginário de transformação do mundo na história. Quem imagina o mundo assim tão perigoso, como abraçará um Credo Social?"  De fato, quem tem em seu imaginário um mundo do qual é necessário manter distância, terá dificuldades em adotar o Credo Social Metodista, que afirma: "ao Senhor pertence a terra e a sua plenitude, o mundo e todos os que nele habitam; por isso proclamamos que o pleno desenvolvimento humano, a verdadeira segurança e ordem sociais só se alcançam na medida em que todos os recursos técnicos e econômicos e os valores institucionais estão a serviço da dignidade humana, na efetiva justiça social".

Suzel Tunes

 

Veja também:

A metáfora do coração


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