Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
joão batista javé
Texto: Salmo 14
v. 1 Diz o insensato em seu coração:
"Não há ?Elohîm".
Eles provocam ruína, cometem atos abomináveis.
Não há um que faça o bem.
v. 2 Javé olha dos céus
para os homens,
para ver se há alguém perspicaz
que busque a ?Elohîm:
v. 3 Cada um é extraviado,
estão todos corrompidos.
Não há um que faça o bem,
não há um único.
v. 4 Acaso não têm conhecimento, todos os malvados,
que devorando meu povo comem seu pão?
Eles não invocam Javé.
v. 5 Lá - foram tomados por pavor,
pois ?Elohîm está na geração do justo.
v. 6 Plano do oprimido vós quereis arruinar,
mas Javé é seu refúgio.
v. 7 Quem traz de Sião a salvação para Israel?
Quando Javé muda o destino de seu povo,
Jacó exulta, Israel se alegra.
A matriz do Salmo 14 é de gente que vive em ambiente de exclusão em sua própria terra, é exílio interno. Posteriormente as comunidades religiosas do judaísmo antigo (séculos VI-V a.C.) contextualizaram o salmo com a sua situação vital, acrescentando o v. 7 e iniciando-o com uma frase interrogativa sintomática do anseio pelo retorno da Babilônia (mî = quem):
v. 7: Quem traz de Sião a salvação para Israel?
Quando Javé muda o destino de seu povo,
Jacó exulta, Israel se alegra.
Mesmo realizando a tradução literal a partir da Bíblia hebraica, entendo que o versículo 2 ganha maior sentido quando proclamado no interstício do v. 1, pois o v. 1b tem a sua sequência narrativa no v. 3; outrossim, transliterei as referências à divindade (?Elohîm = Deus ou, literalmente, "deuses"; Yhwh = Javé) e não ignorei o sinal interrogativo do v. 4 (halo?):
v. 1a Diz o insensato em seu coração:
"Não há ?Elohîm".
v. 2 Javé olha dos céus
para ver se há alguém perspicaz
que busque a ?Elohîm:
v. 1b Eles provocam ruína, cometem atos abomináveis.
Não há um que faça o bem.
v. 3 Cada um é extraviado,
estão todos corrompidos.
Não há um que faça o bem,
não há um único.
v. 4 Acaso não têm conhecimento, todos os malvados,
que devorando meu povo comem seu pão?
Eles não invocam Javé.
Este canto "para o regente de coral" (lamnasseah) é uma liturgia profética reflexiva, fala do malvado como algo inaceitável; não tem relação com o Salmo 53 apesar de alguma semelhança sintática e, diferente de outros salmos (12.8; 75.10-11), não se dirige a toda a comunidade mas a pequenos grupos religiosos.
A liturgia começa com uma queixa; traz como motivo a antecipação da libertação dos jurídica e economicamente fracos, e pode ser interpretado como uma forma dramática da segurança de salvação.
Ao contrário do culto pessoal praticado pelos potentes, a espiritualidade de "meu povo" (?amî) consiste em devolver às vítimas das opressões sua dignidade e sua esperança na vida. O nosso canto é experiência de gente!
A matriz do canto
À margem e ao léu da vida brota uma sensação de impotência, mas nas súplicas e no desejo contra os opressores não há ressentimento; temos, na verdade das coisas, o registro da sociedade por quem obstinadamente resiste e não pode se conformar com a situação de privação de direitos.
Quando a gente marginalizada resiste conscientemente aos desmandos dos potentes, a sua desobediência civil e o seu enfrentamento ganham um aliado em Javé, o Deus salvador. Antes de qualquer protesto Ele exclui o nome dos opressores do "livro dos vivos" (cf. Sl 69.29a: yimmahû missêfer hayyîm). São inaceitáveis as relações de sujeição política e social; portanto, há intrínseco ao canto um "envio" à recuperação dos direitos indevidamente apropriados. Javé toma posição em favor de "meu povo" simultaneamente em que mostra que a situação de miséria não é sinal de abandono divino; na verdade, o "fraco" é o verdadeiro povo de Deus (v. 4).
Interpretação do canto
O v. 1 é radical e orienta uma conduta moral e ética: o princípio da sensatez é temer a Javé. A questão consiste em negar ou buscar o Deus vivo; aos que negam a existência de Javé e, por isso mesmo, tentam devorar "meu povo" resulta pavor, sendo que o seu próprio nome nabal (insensato) os avalia.
O que Javé vê dos céus? O v. 2 registra: uma sociedade pré-diluviana (v. 1b, 3-4; cf. Gênesis 6.5,11,12; 8.21), com pessoas execráveis, que não fazem o bem; especificamente: cometem injustiças contra o povo de Deus.
O v. 3 traça um balanço deprimente: inexistência de gente de bem entre os potentes. O apóstolo Paulo interpretou este Salmo 14 à luz de lugares por onde andou (cf. Romanos 3.10-18). Ao realizarmos o mesmo exercício tornamos coetâneas as imemoriais ações libertadoras, ainda que os potentes da sociedade atual tenham sofisticado os antigos instrumentos de escravidão e morte social.
A liturgia especifica a fala de Javé, pode-se ouvi-la nos v. 4-6. Há no v. 4 a caracterização daqueles/as que negam a existência do Deus salvador através das suas maldades: operadores do mal e devoradores de meu povo; eles devoram o que não lhes pertence, a vida do "fraco", como se comessem pão e não invocam a Javé. Acrescentaria ao v. 4 inúmeras intervenções sociais reveladoras da avaliação bíblica negativa contra atitudes insensatas (p. ex.: Números 12; Am 9.7 [contra o racismo e em favor do povo da pele preta]; Números 27.1-11 [contra a discriminação de gênero]; Deuteronômio 15.12-15 [indenização ao escravo pelos anos de escravidão]; Juízes 19 [em favor do imigrante]; 1Reis 21 [em favor da herança do campesino]; Isaías 10.1-2 [em favor do direito do pobre]; Amós 2.6-8; 6.1-7 [em favor da liberdade e do bem-estar do pobre]; Jeremias 34.8-22 [protesto contra a escravidão]; Neemias 5.1-12 [em favor do perdão de dívidas e do direito à terra de cultivo]; Malaquias 3.5 [em favor do salário do trabalhador]), mas basta a denúncia do nosso canto - realizada em santuário estatal, portanto corajosamente subversiva. Assim a pergunta indignada continua sem resposta: "Acaso não têm conhecimento...?".
Onde é o lugar de Javé, o Deus salvador? Ei-lo nos v. 5-6: Seu lugar é na história de todas as gentes, especialmente entre as que sofrem injustiças. O alcance da denúncia e as possibilidades de salvação impossibilitam restringir o "refúgio" ao santuário (p. ex.: 1Reis 1.50-53; 2.28-30). A teofania/epifania de Javé acontece "Lá" (o v. 5 inicia com o adv. de lugar xam), na geração dos justos (saddîq), a quem Ele se manifesta como refúgio e onde evita a ruína do plano do oprimido (?anî); mas também a teofania/epifania de Javé acontece onde fracassam os ataques dos insensatos contra "meu povo" e onde Ele os infunde pavor. A salvação acontece na terra em que vivemos.
"Lá, no meio daqueles que se presumiam entregues à arbitrariedade, aparece a presença de Deus, justamente do Deus que eles supunham estar longe do fazer humano, mas é na verdade o refúgio dos oprimidos." (Martin Buber)
Também na gôlah (v. 7) há esperança e salvação para "meu povo", o povo de Javé.
Lições do Salmo 14
- O estado do mundo tem sua causa no agir dos insensatos;
- Com o v. 5, entendemos que o lugar de Javé é "lá", onde o oprimido sofre - em um mundo que parece sem Deus, Javé está "na" geração do justo;
- Devemos converter a nossa vida religiosa em autoafirmação salvadora, pois na fé há força de libertação.
Neste estudo por vezes estive em diálogo com F. Crüsemann (Cânon e história social), R. Albertz (Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, vol. I) e L. Alonso Schökel & C. Carniti (Salmos, vol. I). Por fim, assinalo que a pedagogia do nosso canto será adequadamente assimilada ao som das qualidades exigidas por Javé para nos tornarmos "meu povo", canonizadas logo a seguir, no Salmo 15:
v. 1 Javé, quem pode abrigar em tua tenda?
Quem pode habitar em teu monte santo?
v. 2 Aquele de conduta perfeita e ato justo,
e que fala (a) verdade em seu coração.
v. 3 Não calunia com sua língua,
não faz ao seu próximo mal
e não põe difamação sobre seu vizinho.
v. 4 O que tem por desprezível em seus olhos o que é vil,
e aos fiéis de Javé honra;
promete por dano próprio e não deixa de cumprir.
v. 5 Seu dinheiro não dá em juro
e suborno contra o inocente não aceita.
Aquele que age assim não fracassará jamais.
Revdo. João Batista Ribeiro Santos, biblista e pastor da Igreja Metodista na 3ª R.E.
jj.batist@gmail.com