Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
Imagens de fé
Nesse período de férias, a tela do cinema ou da TV pode proporcionar mais do que um momento de lazer em família: pode trazer alimento espiritual
Quero conhecimento. Quero que Deus apareça e converse comigo. Mas ele fica em silêncio..., diz o cavaleiro. Você está se magoando a si mesmo, responde a Morte. |
Antonius Block volta das Cruzadas e encontra a Morte. Propõe a ela uma partida de xadrez. Enquanto estiverem jogando, ele ainda terá tempo para buscar respostas, para encontrar Deus. Afinal, "ninguém pode enfrentar a Morte sabendo que foi tudo em vão". Prepare-se. Agora você vai viver uma história de encontros e fugas, alegrias e incertezas, amor e revolta. A história mais fascinante de todos os tempos...a "única", diriam os teólogos: a relação entre o homem e o sagrado. E quem vai nos contar essa história é o cinema. O filme "O Sétimo Selo", do diretor sueco Ingmar Bergman é um dos protagonistas dessa narrativa.
Por que eu não posso tirar Deus de dentro de mim? |
Foi no ano de 1895 que os irmãos Lumière, Louis e Auguste, mostraram ao mundo o cinematógrafo, invento que buscava reproduzir a realidade quadro a quadro. Mas se os irmãos fotógrafos deram corpo ao cinema, foi o mágico Georges Méliès que lhe conferiu alma, ao descobrir a trucagem. A partir das novas possibilidades técnicas, ele incorporou a fantasia ao cinema e, assim, abriu um novo campo para a criação de filmes como o seu "Cristo andando sobre as águas", de 1899. Surgiu, então, uma avalanche de filmes sobre Jesus e outros temas bíblicos. É claro que já havia um interesse prático, lembra Ismail Xavier, professor de cinema na Universidade de São Paulo: em tempos de cinema mudo, era muito mais fácil contar uma história já conhecida por todos, como a vida de Cristo. Afinal, o cinema nunca esqueceu sua origem como produto da indústria cultural: era necessário criar público para a nova forma de entretenimento.
Você não irá parar de fazer perguntas? diz a Morte. Nunca vou parar, responde o cavaleiro. Mas você não terá respostas.
Para Martin Cezar Feijó, professor de Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie, é justamente da tensão entre o humano e o divino que nasce a poesia. Contudo, essa tensão não existe, necessariamente, nos filmes que recebem o rótulo de "religioso". Ele cita como exemplos os grandes épicos hollywoodianos do pós-guerra, como o filme "Os Dez Mandamentos", de 1956, de Cecil B.DeMille. Eles trazem um discurso muito mais ideológico do que religioso, apregoando os valores do american way of life. A "mensagem" dos Dez Mandamentos está menos nas palavras do Moisés com jeitão renascentista, interpretado pelo ator Charlton Heston, do que no prólogo do filme, um discurso feito pelo próprio DeMille:"O homem deve ser governado por leis divinas ou se submeter aos desmandos de um ditador?"
Mas a ideologia de Hollywood é, acima de tudo, o lucro. Por isso, os filmes dessa época também traziam a receita certa para lotar bilheterias e enfrentar a concorrência da televisão emergente: imagens grandiosas e um melodrama com pitadas de erotismo. Em meio a uma fé romântica, era sempre possível encontrar o olhar insinuante de uma diva ou um belo par de pernas. Conta-se que o diretor D.W.Griffith, autor de Intolerância - considerado um dos melhores filmes da história do cinema e um dos maiores fracassos de público - chegou a comentar, indignado: "Eu nunca vou usar a Bíblia para despir uma mulher!"
Ácido na crítica, o teólogo Roberto Francisco Daniel, o padre Beto, cinéfilo e autor de livros sobre o assunto, define os épicos religiosos hollywoodianos com uma única palavra: "kitsch". Mais do que uma definição estética, para ele kitsch é o filme destinado a trazer a "verdade" pedagogicamente. Segundo o padre Beto, esse é o caso do filme "Maria, Mãe do Filho de Deus", concebido e protagonizado pelo padre Marcelo Rossi. "O máximo que se pode dizer do filme é que é bonitinho. Mas não leva a uma reflexão sobre minha vida".
O trovador Jof vê a Virgem Maria com o menino Jesus. A esposa Mia sorri. Ela já não se espanta com as visões do marido, que ainda tenta convencê-la: Você não acredita, mas é verdade. Não do tipo de verdade que você vê, mas outro tipo.
Para o pastor luterano Joe Marçal Gonçalves dos Santos o filme kitsch hollywoodiano também poderia ser chamado de idolátrico. "Idolátrico é o oposto de simbólico", ele explica. "Como símbolo, Deus sempre está além do que chamamos Deus. Já o fundamentalista vai dizer que Deus está na Bíblia ou no Alcorão e ponto final. No cinema, o perigo da idolatria é a simplificação da realidade". O teólogo Etienne Higuet concorda. Professor da Universidade Metodista, ele defende que a imagem tem que se tornar "transparente" ao sagrado. Ou seja, vemos o sagrado "através" e não "na" imagem.
Higuet e Marçal fundamentam suas opiniões nos estudos de um teólogo alemão do princípio do século passado, Paul Tillich, expoente da chamada "teologia da cultura". Segundo Tillich, a religião seria a dimensão da profundidade que perpassa todos os aspectos do espírito humano. Assim, é possível distinguir o sagrado em manifestações culturais que, aparentemente, não são religiosas. É o que o pastor Joe Marçal faz na avaliação do filme Central do Brasil, tema de sua tese de mestrado na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. No filme de Walter Salles, a professora aposentada Dora, solitária e amarga, sobrevive escrevendo cartas para os analfabetos que passam pela Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Lá ela conhece o menino José, que perdeu a mãe atropelada. A contragosto, acaba levando-o ao interior do nordeste, para que ele encontre o pai. O filme expressa movimentos de busca e fuga relacionados à figura paterna: José busca o pai no sertão, Dora foge de suas lembranças de infância. Numa cena que lembra uma "Pietá invertida", José dá colo a Dora e o relacionamento de ambos ganha nova dimensão. "A exaustão de Dora na Casa dos Milagres é a morte simbólica que dá lugar a uma nova Dora, renascida nos braços de Josué.", diz Marçal.Segundo o pastor, o filme desidolatra a figura do pai. Não nega sua legitimidade, mas a ressignifica, apontando para o que é "central": o indivíduo autônomo diante do outro. "No abandono surge a possibilidade de descobrirem-se como centros de si mesmo, por meio do encontro mútuo".
A tigela de leite e de morangos silvestres é compartilhada por todos. Satisfeita, a atriz Mia deita-se no gramado sob o sol e diz: "Como isso é bom. Um breve momento. Todos os momentos são breves, um dia não é como o outro". |
No filme de Bergman, o cavaleiro Antonius Block e seu escudeiro Jõns parecem ser duas faces de uma mesmo desencanto: Jõns nega o sagrado pelo materialismo ("Desprezo a Morte, dou risada de Deus, porém, agrado a uma mulher"); Antonius o contesta pelo racionalismo. A família de artistas circenses - Mia, Jof e o bebê(esses nomes não lembram os de Maria e José?) optaram por um outro caminho: o amor à vida e à arte.
O resgate do sagrado pela arte fica ainda mais evidente em Andrei Rublev, filme de 1966, do cineasta russo Andrei Tarkovsky. Durante toda a vida o monge e pintor de ícones do século XV foi confrontado com a maldade do homem decaído. Haverá salvação para a humanidade? A angústia leva ao isolamento: Andrei faz voto de silêncio e desiste de pintar. Até que ele encontra o adolescente Boriska, filho de um fabricante de sinos morto pela peste. Herdeiro do ofício paterno, o garoto é incumbido de construir um sino para o rei. E se falhar, será decapitado. Boriska entrega-se com toda paixão ao trabalho e, quando o sino ecoa, confessa, entre lágrimas: havia mentido ao dizer que conhecia os segredos do pai. Sua obra não nascera, portanto, do conhecimento, mas da fé. A partir desse momento, Andrei Rublev volta a pintar. É claro que a maldade e o sofrimento humanos ainda existem. Por quanto tempo? "Para sempre, suponho", responde o diretor Tarkovsky em uma das cenas do filme. "No entanto, quão belo é tudo isso".
Suzel Tunes
(Publicada originalmente na Revista das Religiões, Editora Abril)