Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

igreja luterana revista das religiões

Reportagem publicada na Revista das Religiões, da Editora Abril, novembro de 2004

Suzel Tunes

Domingo, 10 horas da manhã. O sino toca chamando os fiéis. No altar há um sacerdote de batina, um crucifixo e velas acesas. Nos vitrais, cenas bíblicas. Mas logo você percebe que não está dentro de uma Igreja Católica. Entre as obras de arte sacra que adornam a igreja, não há figuras de santos. Num dos bancos da igreja, é possível encontrar a esposa ou os filhos do sacerdote, que é chamado de pastor. E no momento da comunhão, todos os fiéis compartilham do pão e do vinho. Você está numa Igreja Luterana, a igreja que nasceu da Reforma Protestante do século 16.

Olhando em torno, você verá algumas cabeças loiras e faces rosadas, especialmente se estiver em uma igreja do sul do país. É que a Igreja Luterana nasceu na Alemanha e foram imigrantes que a trouxeram para cá. Em algumas igrejas, ainda há horários especiais para cultos em alemão, mas é cada vez maior o número de Souzas e Silvas mesclados a Müllers e Beckers. E além dos clássicos hinos escritos pelo reformador Martinho Lutero, os quais a congregação canta em uníssono acompanhada do órgão, também se ouvem cânticos em ritmo de bossa nova ou samba, cantados com o apoio do violão.

 

Os primeiros protestantes no Brasil

No Brasil, existem duas igrejas do ramo luterano: a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, IECLB, e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, IELB. A mais antiga é a IECLB, que chegou ao Brasil com os primeiros imigrantes alemães. Segundo o historiador René Gertz, professor da PUCRS e UFRGS, existem indícios da presença de protestantes no Brasil a partir de 1555, junto com as invasões francesas. No século XVII, mais protestantes teriam vindo com invasores holandeses. Mas nenhuma destas vindas teria deixado marcas significativas. "O primeiro grupo mais expressivo de protestantes a entrar no Brasil e se estabelecer em definitivo foi o dos luteranos que, a partir de 1819 e, em especial, depois de 1824, vieram como imigrantes", explica Gertz.

Primeiro em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e depois em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, os luteranos se organizaram em comunidades e construíram as primeiras igrejas. Em 1904, chegariam ao Brasil os primeiros missionários luteranos procedentes dos Estados Unidos, estado do Missouri. Tinham o objetivo de procurar fiéis ainda carentes de atendimento pastoral e acabaram fundando a IELB.

Há algumas diferenças decorrentes da constituição histórica e raízes culturais. Assim, por exemplo, a IECLB ordena mulheres, oferece a ceia (eucaristia) a crianças e mantém diálogo com a Igreja Católica; a IELB, não. Mas não há rivalidades entre as duas denominações. "Mantemos um bom diálogo entre as duas igrejas e um bom trabalho de cooperação, principalmente na área de literatura", ressalta o pastor Carlos Winterle, presidente da IELB. As editoras luteranas (Sinodal, da IECLB e Concórdia, da IELB) co-editam devocionários e obras sobre Lutero.

 

Eles são poucos, mas fazem diferença

Segundo os cálculos do professor René Gertz, essas duas igrejas juntas não chegam a somar 1 milhão de membros, algo em torno de 0,58% da população brasileira

Mas quem acompanha o noticiário tem a impressão de que a Igreja Luterana é muito maior. É que os meios de comunicação costumam convidar pastores luteranos para representar o protestantismo em eventos ecumênicos ou mesas redondas com líderes religiosos.O professor Gertz acredita que esta projeção social esteja vinculada à própria qualidade das instituições luteranas. "O primeiro curso de pós-graduação em Teologia reconhecido pelo MEC foi o da Escola Superior de Teologia da IECLB, em São Leopoldo. E segundo dados levantados em 2000, a quarta universidade em número de alunos é a Ulbra, Universidade Luterana do Brasil, mantida por uma comunidade ligada à IELB", destaca ele.

A igreja que nasceu numa universidade

A educação é uma prioridade nesta igreja nascida a partir dos questionamentos de um professor da Universidade de Wittenberg. Foi na porta da igreja da universidade que Martinho Lutero pregou as famosas "95 teses": questões teológicas que acabariam resultando na excomunhão do monge. Mais tarde, Lutero fez uma tradução da Bíblia em latim para o alemão, a fim de que os ensinamentos cristãos pudessem ser acessíveis aos leigos,sem a necessidade da intermediação de um padre. Mas, para isso, era preciso saber ler. Junto aos príncipes alemães, ele defendeu a necessidade da criação de escolas e incutiu em seus seguidores a mesma preocupação. Assim, os imigrantes luteranos que chegavam ao Brasil construíam primeiro as escolas para seus filhos, depois as igrejas.

E essa valorização do ensino vem até hoje, sobretudo em relação às crianças. Nos cultos dominicais, elas recebem atenção especial. Enquanto os adultos celebram no templo, as crianças participam do "culto infantil", com estudos bíblicos preparados em linguagem apropriada à idade. Em outros dias da semana, grupos formados por afinidades de interesse (jovens, casais, senhoras...) também se reúnem para estudos bíblicos organizados no templo ou na casa de um dos membros.

A ação social da igreja também ocorre por meio da participação dos grupos de membros da igreja, sobretudo das senhoras, que organizam trabalhos de assistência direta à população carente ou arrecadação de fundos para instituições. "Nossa força missionária é a ação social", diz o pastor Guilherme Lieben, da Igreja da Ressurreição da IECLB, de Santo André. Na IECLB existem até mulheres que dedicam sua vida exclusivamente às atividades sociais e missionárias, abrindo mão da vida familiar, à semelhança das freiras católicas. Elas são chamadas de diaconisas. "A esta irmandade pertencia a Irmã Doraci Julita Edinger, que em 21 de fevereiro de 2004 foi assassinada em Nampula, Moçambique, onde atuava desde 1998 na constituição de comunidades eclesiais e no desenvolvimento de projetos sociais comunitários", lembra o pastor Walter Altmann, presidente da IECLB. Na IELB, as atividades sociais também têm forte participação feminina, mas elas não se organizam em irmandades, nem optam pelo celibato.

Os dois sacramentos luteranos

Dos sete sacramentos da Igreja Católica (batismo, confirmação ou crisma, eucaristia, penitência ou confissão, unção dos enfermos, ordem sacerdotal e matrimônio), Lutero reconheceu apenas dois: o batismo e a eucaristia (também chamada de "santa ceia").

O batismo - com água, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - é um sacramento ministrado, geralmente, a bebês. Podem ser batizados também jovens ou adultos, desde que não tenham sido batizados anteriormente. A Igreja Luterana não rebatiza fiéis batizados em outras denominações cristãs. "Qualquer batismo com água, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é válido", explica Cláudio Rice Geisler, pastor da Congregação Evangélica Luterana de São José dos Campos e conselheiro distrital (espécie de bispo) do Distrito Paulista da IELB. Depois de batizadas, por volta dos 12 anos as crianças luteranas costumam fazer a "confirmação", uma declaração pública de sua fé e compromisso com a igreja.

Em geral, as igrejas luteranas celebram a ceia todos os domingos, embora não haja obrigatoriedade. Diferente do rito católico, pastores e fiéis têm igual acesso ao pão e ao vinho. O "corpo de Cristo" é recebido com um pedaço de pão, que pode ser uma hóstia (uma massinha de trigo sem fermento). O "sangue de Cristo" é vinho na IELB mas, na IECLB, que oferece a ceia para crianças que ainda não fizeram confirmação, costuma ser suco de uva.Outra alteração luterana em relação à eucaristia católica é o próprio conceito do sacramento: para os católicos, ocorre na ceia o fenômeno da transubstanciação. É uma mudança de substância, na qual pão e vinho transformam-se no corpo e sangue do Cristo crucificado. Lutero acreditava que o sacrifício de Cristo tinha sido realizado de uma vez por todas. Contudo, também discordava de outros reformadores, como Calvino, que entendiam a ceia apenas como um memorial simbólico. Lutero defendia que o corpo e sangue de Cristo estão presentes na Santa Ceia "em", "com" e "sob" o pão e o vinho, o que ele chamava de "presença real do corpo e sangue de Cristo" -- conceito que os teólogos chamam hoje de consubstanciação.

Eles crêem que são salvos pela fé

Seguindo os ensinamentos do líder da Reforma, os luteranos seguem o princípio do "sacerdócio universal". Ou seja, a autoridade máxima não é do sacerdote, mas da Bíblia, à qual todo cristão tem acesso. Mas, ainda que a leitura da Palavra de Deus direcione os passos, ela não garante a paz de espírito. O próprio Martinho Lutero foi um jovem monge atordoado por um perene sentimento de culpa, resultado da consciência da própria imperfeição. Como o ser humano, pecador por natureza, pode alcançar o reino dos céus? Lutero encontrou a resposta na própria Bíblia, lendo as cartas do apóstolo Paulo: "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo" (Romanos 5.1).

A chamada doutrina da "justificação pela fé" bateu de frente com a crença, então corrente, de que boas obras e penitências aplicadas pelos sacerdotes pudessem levar o cristão ao céu. Hoje essa já é uma questão que não divide católicos e luteranos. Em 31 de outubro de 1999, representantes da Igreja Católica e da Federação Luterana Mundial assinaram a "Declaração conjunta sobre a Doutrina da Justificação", na qual se lê: "Confessamos juntos: somente por graça, na fé na obra salvífica de Cristo, e não por causa de nosso mérito, somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que nos renova os corações e nos capacita e chama para as boas obras".
Acreditando que a salvação é uma questão particular de fé, os luteranos valorizam muito a liberdade e responsabilidade individuais. "A Igreja não faz prescrições morais, mas dá orientações evangélicas para a vida de seus membros", afirma o pastor Walter Altmann, presidente da IECLB. Assim, os luteranos são livres para dançar numa festa ou beber uma taça de vinho às refeições, por exemplo - práticas que são condenadas em muitas igrejas protestantes. Condena-se o alcoolismo, não a bebida; assim como se condena o fumo - pelos comprovados efeitos nocivos à saúde - mas não se rejeita o fumante. "O fumo é combatido, mas não é uma questão que determine a salvação. Não existe uma hierarquia espiritual entre fumante e não fumante", exemplifica o pastor Guilherme Lieven, da IECLB de Santo André. Seguindo os ensinamentos do apóstolo Paulo, os luteranos vivem "a liberdade para a qual Cristo os libertou" (Gálatas 5.1), com a responsabilidade de que "todas as coisas são lícitas, mas nem todas convém" (1 Coríntios 6.12).

Evangélicos, protestantes e luteranos

O monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) nunca quis criar uma nova igreja. Num de seus escritos de 1522, ele diz, muito diretamente, como era seu estilo: "Peço que meu nome seja calado e que ninguém se chame de luterano, senão de cristãos. Que é Lutero? Pois a doutrina não é minha! Eu também não fui crucificado por ninguém. São Paulo, em 1 Co 3, não quis suportar que os cristãos se chamassem de paulinos ou petrinos, mas de cristãos. Como poderia eu, pobre e fedorento saco de vermes, fazer com que os filhos de Cristo fossem chamados por meu nome desprovido de qualquer valor?". Contudo, o surgimento de uma igreja "luterana" foi inevitável. Após ser excomungado da Igreja Católica, em 1520, Lutero ficou dez meses escondido no castelo de Wartburg. Ao voltar para sua cidade, Wittenberg, com a proteção do príncipe da Saxônia, retomou o púlpito de sua igreja e voltou a pregar - mas a igreja já não podia ser chamada de católica.

Em 1526, na Dieta (assembléia) de Espira, decidiu-se que cada príncipe controlaria os negócios da igreja em seu país. Assim, a Alemanha ficou dividida em estados católicos e "luteranos". Em 1529, uma nova assembléia decidiu que, nos estados luteranos, as duas facções teriam liberdade de culto, mas nos estados católicos, essa liberdade seria concedida apenas aos católicos. Os nobres que apoiavam os ensinos de Lutero protestaram veementemente contra a decisão e, desde então, popularizou-se, também, o termo "protestantes" para as igrejas nascidas a partir da Reforma. "Mas luteranos e protestantes foram nomes que os outros nos deram, o termo que nós cunhamos foi evangélicos", explica o pastor Guilherme Lieven, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. A palavra "evangélico" tem origem em um dos três pilares da Reforma: sola gratia (somente a graça), sola fide (somente a fé), sola scriptura (somente a escritura). Ou seja: a salvação vem somente pela graça, mediante a fé, tendo a escritura - o "evangelho" - como guia.

A Irmandade Evangélica de Maria

Entre os vários parques de Curitiba, existe um especialmente dedicado à oração: é o Bosque de Jesus, que fica no Bairro São Lourenço. Entre árvores e flores, há esculturas retratando passagens da vida de Cristo e bancos convidando à meditação. Quem zela por esse lugar é a Irmandade Evangélica de Maria, uma instituição internacional e interdenominacional fundada na Alemanha, em 1947, pela iniciativa de duas moças luteranas: Klara Schlink e Érika Madauss, que adotariam o nome religioso de Madre Basilea e Madre Martyria, respectivamente.

O estilo de vida das irmãs de Maria lembra o das freiras católicas: ao entrar para a irmandade, elas ganham um novo nome, passam a viver em comunidade, usam hábitos brancos e adotam o celibato. "Recebemos uma aliança com o nome de Jesus. Não estamos casadas com a Igreja", explica Irmã Ádola, de Curitiba, a única filial da organização no Brasil. Por isso, embora as primeiras irmãs fossem luteranas, a irmandade tem um caráter ecumênico, contando com membros de diversas denominações evangélicas, procedentes de 18 países. Irmã Ádola, por exemplo, é batista e norte-americana.

O objetivo da Irmandade é "seguir a Jesus, segundo o exemplo de Maria". Elas atuam especialmente no âmbito da educação, por meio da edição de livros, realização de estudos bíblicos e aconselhamento espiritual (que pode ser agendado pessoalmente). A sede da entidade chama-se Canaã, e não por acaso: nascida nos escombros de uma Alemanha devastada pela guerra, a Irmandade Evangélica de Maria dedicou-se, desde o seu nascimento, a desenvolver um "ministério de reconciliação" com a comunidade judaica. No Brasil, a Irmandade estendeu sua mensagem de perdão e diálogo aos povos indígenas, que, tal como os judeus, também foram vítimas de violência com o aval do cristianismo.

PARA SABER MAIS:

Livro:

Igreja e Germanidade, de Martin Dreher, Editora Sinodal,/Escola Superior de Teologia, São Leopoldo, 2003

Sites:

Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil: www.ieclb.org.br

Igreja Evangélica Luterana do Brasil: www.ielb.org.br

Irmandade Evangélica de Maria: www.canaan.org.br

Editora Concórdia: www.editoraconcordia.com.br

Editora Sinodal: www.editorasinodal.com.br

 


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