Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Entrevista Vera Paiva sexualidade

Com fervor e autonomia


ENTREVISTA: VERA PAIVA - Professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids; Para psicóloga, a religião, em si, protege a juventude. Mas não impede que os fiéis sejam sujeitos da própria sexualidade

Mônica Manir

Vera Paiva é uma ativista dos direitos humanos - e das palavras certas no lugar devido. Vigia as próprias expressões e as minhas, e está cercada de textos precisamente científicos empilhados na bancada em L do escritório de sua casa, em São Paulo. No computador, ela mostra mais um trabalho, e outro, muitos já fugidos do campo virtual para a ação.
Um deles tem o seguinte título: Jovens e Religião: Sexualidade e Direitos entre Lideranças Católicas, Evangélicas e Afro-brasileiras.

Foi especialmente sobre os resultados desse material que conversamos às vésperas de dois congestionados eventos na capital paulista: a 16ª Marcha para Jesus, que, soubemos depois, reuniu 1,2 milhão de marchantes na quinta-feira, e a 12ª Parada do Orgulho GLBT, que deve
atrair hoje cerca de 3,5 milhões. O grupo que Vera coordenou queria compreender como a convivência em comunidades religiosas repercute na experiência sexual dos jovens em SP, Rio e Recife. Os resultados em detalhe ela explica daqui a pouco, na entrevista.

Por ora, a professora da USP, colaboradora da Universidade Colúmbia, nos EUA, e autora de livros sobre sexualidades, gêneros e aids, como Fazendo Arte com a Camisinha, reconhece que tivemos grandes avanços nos últimos 20 anos quanto ao uso do preservativo. Também afirma que a religião protege a juventude em certa medida. Mas interpela seu
otimismo com dois entretantos: muitos evangélicos iniciam sua vida sexual sem a prevenção, e a aids avança entre os jovens brasileiros, em especial os homossexuais. Não podemos perder essa janela de oportunidade imensa de trabalhar a educação sexual em um grupo gigantesco de gente. É a hora e a vez, portanto, de arrebanhar a multidão de jovens contra os estigmas e a favor do direito irrestrito à informação, conclui, ajeitando a pilha de vírgulas, dois pontos e
exclamações sobre a mesa do escritório.

A senhora coordenou uma pesquisa que envolveu jovens, religião e sexualidade. Qual foi o resultado mais surpreendente?

Fizemos uma pesquisa entre líderes católicos, evangélicos e afro-brasileiros em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro. O que verificamos é que, entre jovens pentecostais, houve um aumento da proporção dos que se iniciaram sexualmente antes dos 19 anos, provavelmente antes de casar. E esse número aumentou sem a prevenção. Ou seja, esses jovens estão aumentando a quantidade de sexo, mas não a de camisinha.

A que atribui isso?


Quero chamar a atenção para o seguinte: mesmo diante dos dogmas, as pessoas conseguem ser sujeitas de sua própria sexualidade. Veja que esse estudo envolveu jovens que são líderes religiosos na sua comunidade. Eles participam, são ativos, militam. Os evangélicos afirmam que sexo fora ou antes do casamento é pecado e permitem ou mesmo recomendam contraceptivos, mas dentro do matrimônio. Quando você vai ver, uma proporção imensa deles transou antes do casamento - e sem preservativo. Então dizem uma coisa e fazem outra.

A Igreja Católica também prega o sexo após o casamento?

Sim, tanto a Igreja quanto os cristãos protestantes estimulam o adiamento da vida sexual até o casamento. E, na verdade, o que se tem é uma contradição gigantesca - em boa parte, a idade média de iniciação sexual está pelos 15 anos, tanto para meninos quanto para meninas.
Raras pessoas casam antes disso. O que a pesquisa mostrou, porém, é que houve um aumento no uso de preservativos na primeira relação, exceto entre os jovens protestantes.

O jovem conversa com os líderes religiosos sobre sexo?

Os líderes se preocupam com o impacto da erotização da mídia entre jovens e apontam a atividade sexual como um assunto que se propõem a acolher. O que a pesquisa revelou, no entanto, é que quase 100% dos jovens conversam, em primeiro lugar, com os amigos. Depois, com os pais. Em seguida, com o namorado ou com a namorada e, então, com outros parentes. Os líderes religiosos chega, no máximo, a 5%. E, ainda assim, não se fala de sexo como fonte de prazer e descoberta, mas como razão de sofrimento e problemas.

Qual deveria ser o tom dessa conversa?

Não adianta falar que sexo é perigoso e proibido. Precisamos ensinar as pessoas a transformar a curiosidade e a vontade de amar em entrega, em vontade de ter intimidade. Isso não é uma questão restrita à juventude, mas é ali que se inicia. Ao mesmo tempo, é necessário quebrar essa imagem de que a adolescência é uma fase problemática da vida. No campo da sexualidade, a gente não se cura da adolescência quando passa para a vida adulta. Estamos nos enganando achando que, depois dos 21 anos, todo mundo vai usar camisinha, não vai engravidar contra a vontade, não vai ser impulsivo. Isso é uma bobagem. Cria-se a ilusão de que, assim que passar dessa idade, está tudo resolvido. Sem projetos de educação,
o jovem pode mesmo transformar o desejo inconsciente num desejo atuado de forma inconseqüente e uma ilusão. Agora, se você acha que é a idade que provoca isso, será absolutamente injusto com 90% dos jovens que são absolutamente comportados, estudam quando podem, vão à escola quando têm essa alternativa, quando a estrutura familiar permite e a escola não expulsa.

Mas certos comportamentos na adolescência tendem a se perpetuar?

Nada é perpétuo. Muitas pessoas mudam ao longo da vida. Mas sabemos que os primeiros anos são marcantes em relação ao que seremos no futuro, inclusive em relação à sexualidade. Uma criança abusada sexualmente tem uma experiência diferente de vida em relação a esse tema. Um adolescente que começa a vida sexual impondo-se cuidado e planejamento tende a manter isso ao longo do tempo. O adolescente que se arrisca o tempo inteiro pode se relacionar assim lá na frente.

A religião protege o jovem?

Em certo sentido, sim. Ser membro de uma comunidade religiosa ajuda o jovem a permanecer na escola, a ter acesso à saúde. Religião dá sentido à vida, ajuda a ter valores estruturados, auxilia a família e a escola a educar. Ao mesmo tempo, é fonte de discriminação. Cerca de 3% dos católicos, 16% dos evangélicos e 30% dos pertencentes ao candomblé/umbanda disseram isso na pesquisas. Os devotos desse último grupo costumam, inclusive, esconder a própria religião, afirmando ser espíritas ou espiritualistas. Os evangélicos também são discriminados,
mas não escondem seu credo.


O sexo tem a mesma significação para todos os grupos?

Para os adeptos do candomblé e da umbanda, o sexo é fonte de prazer e troca de energia. Já a maioria dos católicos diz que sexo é prova de amor pelo parceiro ou pela parceira. Uma proporção importante deles também afirma ser importante para constituir família, mas essa é a
maior escolha dos evangélicos. Interessante que, quase na mesma medida para afro-brasileiros e católicos, o sexo é uma necessidade física, como a fome e a sede. Para todos, a idade não é importante para a primeira vez, mas a maturidade, sim.

Como esses grupos vêem a homossexualidade?

A maioria entende que ser homossexual não tem a ver com a esfera religiosa, que os homossexuais precisam ser respeitados como seres humanos, aumentou a proporção de tolerância com os homossexuais, mas que nem por isso eles devem demonstrar ou atuar sua sexualidade dentro do grupo religioso. Esse tema foi especialmente quente e polêmico entre
os jovens e líderes do candomblé e da umbanda, que esperavam mais tolerância aos homossexuais no cotidiano e nas respostas aos questionários. Ainda assim, a homossexualidade é mais acolhida entre os afro-brasileiros, tanto como orientação sexual assumida quanto para o sacerdócio.

E para os evangélicos e católicos?

A heteronormatividade é uma referência nas religiões cristãs. Para os evangélicos, conduzir-se abertamente como homossexual é uma forma de não respeitar a religião porque o papel do homem e da mulher é a reprodução. O homossexual deve, então, ser acolhido e aconselhado, mas precisa passar por um tratamento espiritual para se libertar de sua orientação. Alguns líderes acreditam que o homossexual não pode ser sacerdote porque é papel de homem ou porque precisam ainda superar seu homossexualismo, remetendo novamente à patologia. Entre católicos e anglicanos, a homossexualidade está em pauta. Há muitos grupos católicos mais abertos à diversidade, que começam a debater o dogma, apesar do discurso oficial nada progressista da Igreja. Entre os anglicanos, já é possível um gay viver a experiência do exercício do sacerdócio, por exemplo.

A senhora também coordenou um trabalho com jovens portadores do HIV. O estigma da aids ainda está associado à homossexualidade?

Sim. Muitos meninos com quem a gente conversou tinham medo de dizer que eram portadores e serem chamados de bicha, quando podem ter sido infectados pelos pais ou numa relação sexual na rua. Vice-versa e ao contrário. O menino homossexual também não consegue conversar com os outros e discutir o assunto em casa, na igreja ou na escola. Os que
estão à volta acham que o silêncio ensina alguma coisa, como se o silêncio fosse equivalente a eliminar a curiosidade, o desejo de namorar, a paixão. O silêncio não ensina. Ele deixa um vácuo que os jovens preenchem com a experiência viva, que pode ser desastrosa, ou
com informações incorretas ou mal resolvidas.

Quais seriam essas experiências desastrosas?

Eles podem deprimir, se maltratar, não se relacionar, se esconder, que é o que há de mais triste. É uma restrição desnecessária de horizontes, tanto para os homossexuais como para esses jovens portadores de HIV. Eles têm desejos que não podem existir. No caso dos adolescentes com HIV, há todo o dilema de para quem contar, como contar, quando contar,
o medo de ser abandonado, ser rejeitado. E eles ainda precisam lidar com o início da vida sexual, o marco da adolescência. Como ocorre com todos os adolescentes, os adultos mostram o perigo. Não ensinam como dizer sim, só como dizer não. Isso atrapalha porque dificulta o acesso à informação. Veja você que é grande o número de jovens, cerca de 70%
na nossa pesquisa, que fazem sexo contra a vontade, sob violência. Isso é mais comum entre meninos homossexuais. A situação fica ainda mais complicada quando se observa que a aids está crescendo justamente entre os jovens, em particular os homossexuais. A aids não é problema superado.

Nesse sentido, em que está falhando a educação sexual?

Nas escolas, quando se dá informação sobre aids, assume-se que a prevenção é para heterossexuais ou para pessoas negativas. Esquece-se que, naquele grupo de alunos, pode haver jovens portadores do HIV que, portanto, vão precisar de um pouco mais de informação. O mesmo ocorre com os jovens homossexuais. Onde está a informação específica para quem
faz sexo de um modo diferente?

O grau de escolaridade faz diferença na prevenção?

A escolaridade protege em vários sentidos. Os jovens de mais escolaridade têm taxa de uso de preservativo muito maior e, além disso, iniciam a vida sexual bem mais tarde. Estão há mais tempo na escola, têm projetos de vida que se confundem com a profissionalização e,
eventualmente, abrem mão de outras coisas. A escolaridade é um próxis de renda familiar, um dos indicadores mais interessantes para a gente compreender o status socioeconômico. Esse status significa não apenas a quantidade de dinheiro que se tem, mas onde ele é investido. Exemplo clássico: uma colega nossa fez uma comparação entre famílias operárias
e famílias de funcionários públicos com a mesma renda. As famílias operárias, ou seja, B e C em ascensão, tendem a gastar o que ganham para comprar casa, para se estabelecer no terreno, ser proprietárias de algumas coisas. Não necessariamente investem diretamente em educação.
As famílias de funcionários públicos, por sua vez, tendem a pagar aluguel, morar no centro da cidade, tudo para investir brutalmente na educação dos seus filhos. Normalmente, as famílias de maior escolaridade estão seguindo o rumo daquilo que é mais típico das
famílias de alta renda, que é investir fortemente na educação e ensinar os filhos a se cuidar melhor.

Na pesquisa sobre uso de preservativos na iniciação sexual dos adolescentes brasileiros, apareceu um resultado intrigante: a diminuição do uso de camisinha em jovens mais escolarizados que iniciaram a vida sexual com menos de 14 anos. Como explicar isso?

Ele é relevante. A minha hipótese é a de que tem muita gente com alta escolaridade nesse grupo que começa a vida sexual de forma desprotegida. Não é um problema dos pobres. A questão é que se deixou de fazer a prevenção da aids. Os pais e as escolas estão achando que o problema está resolvido. O fato de termos um programa bem-sucedido de aids pode levar a crer que quem faz o programa é o outro; eu não preciso mais fazer a minha parte. As pessoas enjoaram de falar sobre aids e se esqueceram de que os jovens que estão ali não são os mesmos de cinco, seis, sete, oito, nove, dez anos atrás. Eu tenho de falar o tempo inteiro sobre isso porque a aids não vai embora, a cura não aconteceu, a gente não derrotou o vírus.

O fato de não se ver na mídia pessoas abatidas pela doença pode contribuir para essa sensação de que a aids está superada?

Existe hoje uma cultura de se fazer o serosorting, ou seja, acreditar que é possível adivinhar o status sorológico do parceiro pelo aspecto do portador. A cara da aids não é a cara da lipodistrofia. Outros acham que é coisa de gay de mais idade, mas, como já disse, a aids está
crescendo entre os mais jovens. Outros acreditam que virou distúrbio crônico, tal qual diabete. Acontece que a discriminação ainda é pesadíssima sobre quem é portador. A dificuldade para namorar, para revelar aos parceiros que se têm o HIV... Até conseguimos reduzir o estigma de forma importante no Brasil, mas a vida com aids não é igual à vida sem aids.

O tema oficial da Parada GLBT deste ano é a defesa do Estado laico.
Essa bandeira política é eficaz?


Ela é fundamental para garantir as políticas de Estado de prevenção para que a gente possa falar abertamente sobre camisinha na escola - mas não só. Deve-se incorporar e respeitar os valores de todas as religiões em todos os contextos. A gente entra em um tribunal e tem lá
um crucifixo; no serviço de saúde há uma cruz. É complicadíssimo para um pai-de-santo fazer um ritual de despedida para uma pessoa dentro de um hospital, por exemplo. As crianças adeptas do candomblé e da umbanda sentem dificuldade para discutir seus valores na escola, assim como os evangélicos. Aliás, é importante aceitar que os evangélicos defendam a
virgindade até o casamento. Isso não significa que prescindam de informações sobre prevenção para o caso de mudarem de idéia, de religião, de sofrerem abuso ou de se verem em um contexto em que agir de acordo com os seus valores seja impossível por mil razões. Isso é um direito da juventude, independentemente de sua crença e orientação sexual.

É possível produzir tolerância religiosa e sexual ao mesmo tempo?

Sim. Sentimos isso quando colocamos líderes e jovens das três religiões para conversar sobre os direitos à proteção, que são direitos humanos, em suma. Uma tolerância produz a outra e vice-versa. Fortalece-se a idéia de que a humanidade é, em princípio, diversa. Não existe uma
humanidade natural, a humanidade do homem, a humanidade da mulher. Gênero é um conceito cultural, aquilo que a sociedade diz ser do homem e da mulher, e não um conceito biológico. Ele varia na sociedade brasileira em função da religião, da crença, da rede social. Em certo contexto, a bissexualidade pode ser aceita entre as meninas. Mas será
igual entre os meninos?

Como, em resumo, fortalecer o Estado laico nesse quadro de direitos humanos?

Há um princípio usado pelo Boaventura de Sousa Santos (sociólogo português) para interpretar a Carta dos Direitos Humanos, que eu adoro. É o seguinte: defender a igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade e defender a diferença sempre que a igualdade implicar descaracterização. Se consigo respeitar as crenças e os valores dos outros, consigo respeitar as orientações sexuais dos outros. Precisamos trabalhar com a noção de que o direito à informação e à prevenção são direitos humanos, fundamentais, e que, uma vez assim, é uma obrigação do Estado proteger e promover esses direitos. Isso é o que justifica o
Estado laico.


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Centro de Referencia e Treinamento DST/AIDS.
http://www.crt.saude.sp.gov.br


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