Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013
entrevista Néstor Miguez
A Igreja na resistência ao Império
Entrevista com o teólogo argentino Néstor Miguez
O teólogo e pastor metodista Néstor Miguez é professor do Instituto Universitário ISEDET, localizado em Buenos Aires, Argentina. Especializado na área de Bíblia, especialmente em Novo Testamento e teologia paulina, ele vem realizando pesquisas que relacionam as Escrituras a temas de nosso cotidiano, como economia e política. Juntamente com os teólogos
A resistência ao Império que está não apenas ao nosso redor, mas dentro de nós, é o tema desta entrevista, concedida pelo professor Néstor Miguez na Universidade Metodista, onde ele ministrou a aula de abertura do Programa de Ciências da Religião para o ano letivo de 2010.
Você tem escrito sobre a crítica bíblica ao Império, entendendo-se a palavra Império como realidade política, certo? Como você explicaria a alunos de uma Escola Dominical o que é esse Império?
O conceito de Império não é só político. É quando distintos grupos poderosos detêm o poder econômico, político e cultural, com apoio das forças militares. É uma conjunção de forças que, em lugar de se controlarem e equilibrarem mutuamente, unem-se num processo de dominação.
Seriam, então, os governos autoritários?
Governo autoritário é diferente de Império, nem todo governo consegue estabelecer a condição de Império e juntar outras forças
É o caso da economia de mercado nos dias atuais?
A economia de mercado é uma forma de economia tão boa e tão pecadora quanto qualquer outra. O problema é quando ela se impõe como única forma de gestão econômica e começa a regular todas as relações sociais, aliando-se ao poder militar, político, à indústria cultural... É o império pós-moderno que estamos vivendo. Quando a economia de mercado é limitada pela economia solidária e formas de benefício estatal, ela não tem poder de controlar as decisões políticas e as forças militares e, então, ainda não há situação de império.
A América Latina é um dos lugares onde se consegue limitar com mais eficiência algumas dessas imposições imperiais. Um ponto crucial foi a reunião de Mar Del Plata, em 2005, na qual presidentes latinoamericanos se negaram a entrar na
Você afirma que o Império cria comportamentos e formas de pensar. A colonização da mente é, portanto, mais do que resignação, é a reprodução do comportamento imperial. Você pode dar exemplos de como a Igreja hoje reproduz a mentalidade do Império?
Os exemplos abundam na história. Podemos citar o acompanhamento missionário a projetos imperiais ingleses e europeus do século 19. Ou o catolicismo como empresa de conquista e invasão nos séculos 16 e
Muito mais sutis são as teologias da paz, ou seja, todos os conceitos que tentam incutir a idéia de que o conflito em si é pecado, que qualquer manifestação do conflito contraria o sentido cristão de amor ao próximo. A contribuição da teologia da paz no esquema imperial é difícil de detectar, mas efetiva. Todo Império se constrói sobre a anulação do outro. Quando se elimina o conflito elimina-se a possibilidade da reclamação, da negação, elimina-se a voz do oprimido. Jesus diz: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas" (Mateus 6.33), inclusive a paz, pois a paz resulta da justiça, como também nos lembra a Bíblia: "O efeito da justiça será paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para sempre" (Isaías 32.17).
Imagino que, quando você fala do Império e de suas formas de opressão, ouça comentários do tipo "isto é teologia da libertação; é uma ideologia ultrapassada". Esse é mais um mecanismo de colonização mental ou, de fato, a teologia da libertação não é mais uma boa ferramenta para se pensar os dias de hoje?
A teologia da libertação foi um momento teológico que surgiu em virtude de um contexto. Aquela teologia está vinculada com um momento do passado; o que não significa que o momento atual não exija uma teologia da libertação vinculada com o presente.
É necessário manter o conceito liberador da busca da plenitude da vida humana, da necessidade de justiça (incluindo-se questões de gênero e étnicas) diante do atual contexto econômico do capitalismo financeiro. A teologia da libertação encontrará, portanto, novos desafios para seguir sendo teologia da libertação. Em fidelidade ao passado, mas não como uma reprodução do passado.
Em um de seus artigos você diz que é impossível resistir ao Império que está ao redor e dentro de nós. Mas você fala também da confiança na ressurreição como possibilidade para uma nova realidade, a "esperança escatológica": "Nossa esperança não está o passado, mas no futuro". Você não está falando apenas da vida eterna, não é? Que esperança temos para os que estão sofrendo hoje? Que caminhos existem para que a Igreja seja significativa para a sociedade de hoje?
Vida eterna é afirmação de fé cristã que não vou negar. Nego que seja apenas depois da morte. Começa no corpo que hoje habitamos. Portanto, é esperança presente já, ainda que seja de uma forma parcial. Temos o desafio de descolonizar a mente, de nos desfazermos das lógicas imperiais e buscarmos relações humanas não mediadas pelo poder imperial do dinheiro e dos meios de comunicação. Somos desafiados a sermos donos do nosso próprio desejo.
Neste processo, as igrejas podem ser parcialmente (com mais dificuldade em sua face institucional) um espaço para pensar e viver modos alternativos de relação social, não regidos pela dinâmica da concepção imperial. Isto é Paulo! Vários filósofos políticos seculares (alguns não cristãos e até ateus) estão estudando hoje a teologia de Paulo. Eles estudam como o apóstolo Paulo foi capaz de construir comunidades contra-imperiais
Mas os textos do apóstolo Paulo também já foram usados para justificar situações de opressão e escravidão, não é?
Paulo visava proteger a vida cotidiana. Se ele aconselhasse os escravos a se rebelarem, ele os estaria mandando à morte. No entanto, nas comunidades cristãs, "não há escravo, nem livre". É o que se vê, por exemplo, na carta a Filemon. Paulo defende outra forma de relação humana não marcada pela lógica do império nas comunidades.
O número de igrejas evangélicas nas periferias brasileiras está crescendo. Também estão crescendo, nestes lugares, os índices de violência, especialmente entre os jovens, e os casos de gravidez na adolescência, reproduzindo o ciclo de miséria. Onde a Igreja está falhando?
As igrejas criaram um espaço do religioso separado da vida cotidiana. É uma espécie de esquizofrenia que permite aplacar certas angústias da vida cotidiana. Era o que Bonhoeffer chamava
Há algumas comunidades que conseguem, em nível pessoal, resgatar algumas situações de vida, como a recuperação do alcoolismo ou da violência familiar; mas não têm peso suficiente para transformar o entorno. A ação individual não alcança a comunidade se não se transforma
Você está integrando um dos grupos de estudo da Conferência de Edimburgo 2010 (de
De fato, grupos ecumênicos têm sido vistos como contrários à concepção de missão, e a missão como contrária ao diálogo ecumênico. É preciso, portanto, revisar tanto o conceito de missão quanto o conceito de ecumenismo. A evangelização não visa a ganhar adeptos que mantenham a mesma mentalidade de antes. Missão é processo de anúncio do Evangelho que põe a Igreja em busca de transformação do
Contudo, se o ecumenismo significa uma política de bom entendimento pelo qual eu renego minhas convicções e espírito crítico não é ecumenismo. Sou totalmente ecumênico em minha história e prática de vida. Parte da missão da Igreja é justamente proclamar a absoluta igualdade dos seres humanos. Mas o diálogo ecumênico não é ocultamento das diferenças. Conflito é parte da missão. Se suspendo minhas convicções não sou sincero no diálogo. Se entro refratário também não sou sincero, porque não quero dialogar. Este é o resultado dos absolutismos da verdade. Jesus foi mais sutil do que isso. Em João, ele promete que o Espírito Santo nos "guiará a toda verdade". (João 16.13). Então, eu não tenho a verdade, essa é uma busca guiada pelo Espírito Santo. Nessa busca compartilho, dialogo. E o Espírito Santo acompanha estes encontros. "Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles"(Mateus 18.20). Jesus está presente no encontro com o outro.