Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 25/08/2011

Entrevista com o brasileiro que se tornou liderança do metodismo britânico

Durante o mês de julho de 2011, a Faculdade de Teologia da Igreja Metodista recebeu a visita do pastor Reynaldo Leão-Neto, o Léo. Aluno da FaTeo, formado em 1982,  o pastor Léo foi ordenado presbítero na Inglaterra e vem desenvolvendo um significativo trabalho com o povo de rua. Agora, ele está assumindo o cargo de Superintendent Minister, que equivale ao de Bispo no Brasil.

 

Você nasceu em família metodista? O que o levou a optar pelo ministério pastoral?

Eu sou filho de pastor metodista. Meu pai, Reynaldo Ferreira Leão Junior, estudou na Faculdade de Teologia nos anos 50, mais precisamente de 1950 a 1956. Fez o curso longo e por ter defendido uma tese muito diferente e profundamente política, nunca se formou. Teve foto de formatura e tudo, mas o canudo ele nunca pegou. Sua tese era simples, era sobre a história de Israel. Ele estudou o Pentateuco e mostrou que a identidade do Povo Judeu não dependia da terra prometida, achava que o chamado de Deus era anterior à promessa da terra, e à saída do Egito. Remetia a Abraão chamado a deixar sua terra e ser uma benção às nações. Não me lembro bem dos detalhes no momento, há tempo ele me contou. Mas a tese, com a decepção dele de não ser permitido formar-se, foi para o fogo do fogão de lenha da cozinha que era anexa ao edifício Alfa. Imagine, depois de tanto trabalho e amor a um assunto tão relevante, ainda hoje rodeado de controvérsias, colocar todas as cópias no fogo?!

Eu deveria ter dito logo que sou filho de pastor e de profeta também. Pense: que voz se levantara? Quem apresentou uma visão alternativa? Uma leitura bíblica cortante? E tudo assim bem no começo, logo depois da decisão desastrosa das Nações Unidas de estabelecer o Estado de Israel às custas dos Palestinos em 1948. Esta é uma situação que até hoje gera injustiça sobre injustiça. A tese do Pastor Leão era realmente profética. E o ministério dele não foi diferente. Amado pelos paroquianos, ajudou os pobres e questionou o sistema. Ensinou História pra gente, apoiou o PT desde o nascimento e nunca engoliu o Golpe de 1964.

Meu pai não era um homem de grandes emoções, apesar de ter queimado a tese no fogão a lenha. Sentiu que poderia ser pastor quando viu um número grande de jovens orando de joelhos, clamando para saber se eram chamados ao ministério. Ele pensou: “se este bando pensa que pode ser pastor, então eu posso também.” Chegou ao ministério por outro caminho que não o da Faculdade de Teologia, pois não havia concluído o curso longo, e não o deixaram transferir para o curso breve. Demorou mais dez anos para ser ordenado. Foi ordenado em 1966, no primeiro Concílio Regional da Sexta Região Eclesiástica, em Londrina, Paraná, tendo traçado o caminho do Provisionado.

Meu chamado ao ministério já foi bem diferente do caso com meu pai. Minha experiência foi toda mística: busca intensa, “abandonamento” nas coisas do Evangelho, palavra de profecia. Eu tive e tenho uma experiência de fé mais interiorizada, digo, mais internalizada. Na infância orava e lia a Bíblia com extrema disciplina e intensidade. Aos sete anos tive uma vivência de cura interior. Aos doze, de dedicação pessoal a Deus. Eu era adolescente quando, finalmente, ouvindo o chamado de Deus, cheguei à conclusão que deveria ser pastor. Fui chamado para ser pastor. E o fui desde os primeiros momentos. A ordenação veio na Inglaterra muitos anos depois de minha formatura na Faculdade de Teologia.

Em que ano se formou pela FaTeo?

Formei-me em 1982, sou da turma que entrou em 1979. Devo muito à Faculdade de Teologia pela minha formação teológica. Mas, acima de tudo, sou imensamente grato à Faculdade de Teologia por ter me feito um eterno estudante.  Nunca perdi o desejo de continuar estudando. Terminei meu doutorado há pouco tempo na Inglaterra. Trabalho fora do Brasil, falo em muitos contextos diferentes, e onde vou, não me sinto carente. 

Daquele período na FaTeo lembro-me que a mudança de fé mesmo ocorreu enquanto servia como pastor acadêmico na periferia de São Paulo. Foi resultado da inquietação que a gente sofre quando encontra o pobre: ver a face de Jesus nos olhos de quem sofre. Sou discípulo de Jesus, um aprendiz, mas de um aprendizado que envolve toda a vida. A universidade da vida ensinou muito. Como é mesmo o termo no Novo Testamento para este aprendizado que vai para além do conhecimento intelectual? Acho que é mathetes. O discípulo é um eterno aprendiz, um eterno estudante.

Terminei meu curso de Bacharel em Teologia em 1982. Saí orgulhoso da Casa dos Profetas para ministrar no mundo. Trabalhei com Rádio, TV e com Teatro. O auge daquela experiência foi quando fui assistente de palco para o musical “O Fantasma da Ópera”. A experiência mais relevante, porém, foi ser professor de Educação Religiosa no Colégio Bennet, no Rio de Janeiro, onde participei da equipe de Pastoral Escolar e Universitária. Todos os anos em que fui professor lá, de 1985 a 1988, fui homenageado nas formaturas de final de curso para o segundo grau e para o curso de Magistério. Naquele período morei em uma comunidade cristã. Mas não pense que era “terra santa”, porque não era. A dimensão da fé era muito importante para nós, as amizades caras, e as festas muito boas. Logo depois daquele tempo significativo no Rio, fui à Inglaterra.

Como se deu sua ida à Inglaterra? Você já pensava em desenvolver um trabalho no exterior?

Escrevi um trabalho para o Concurso Nacional de Monografias sobre a História do Metodismo Brasileiro, quando do cinqüentenário da Autonomia, em 1980. Ganhei o concurso, um dos prêmios era uma bolsa de estudos no exterior e o outro a publicação do trabalho monográfico.

Contava a história da Igreja na década de 1960, o contraste água/óleo entre as duas metades daqueles dez anos, isto é, uma igreja preocupada com a responsabilidade social na primeira metade, e a virada conservadora que caracterizou a segunda parte da década; o fechamento da Faculdade de Teologia em 1968; a colaboração com o regime militar por parte dos Sucasas e a entrega de Anivaldo Padilha e outros jovens da Igreja aos serviços de repressão: a tortura, a morte, e o exílio. Depois de trinta anos que escrevi aquela história triste, o que não podia ser dito por falta de provas está estampado na imprensa hoje. Li a reportagem na “Isto é” com uma certa inveja de pesquisador. Eu sabia de tudo. Tinha entrevistado o Anivaldo logo depois da Anistia de 1979, assim que ele pisou no solo nacional. Tinha entrevistado o Luiz Roberto Alves que se recusou a sair da FaTeo logo após o seu fechamento; e até o Bispo Almir dos Santos (sua grande marca, o sermão na Conferência do Nordeste em 1962 sobre o texto de Lucas 4. 16-18 – este sendo o lançamento antecipado e metodista da Teologia da Libertação). Sabia dos responsáveis pela traição, mas não podia confirmar, e não podia escrever. Agora os arquivos revelados pelo “Brasil Nunca Mais” confirmaram. A notícia triste é que traição existe. Claro que foi todo um movimento institucional da Igreja Metodista de virada conservadora, juntamente com a nação. Perdemos, como Igreja, uma oportunidade histórica de testemunhar o Evangelho que é boa notícia de liberdade, paz e justiça. Os católico-romanos foram mais fiéis do que a gente.

Contei o que pude contar. Na sabedoria do Colégio Episcopal a publicação foi deixada de lado. Consideraram que era muito cedo, que as pessoas estavam vivas ainda. Mas, pela generosidade da Igreja, depois de alguns anos acabei gozando a bolsa de estudos no exterior. Escolhi uma instituição pequena e pobre, especializada em Teologia Urbana, em Sheffiled, norte da Inglaterra. Começava ali uma vida nova, uma segunda chance.

“As coisas antigas passaram, eis que se fizeram novas”. Dom Mauro Moreli, primeiro bispo romano de Caxias e São João de Meriti, RJ, disse-me uma vez: “Léo, os homens fecham uma porta, mas Deus abre 10 janelas”. Quem diria, fui parar onde jamais sonhei que eu iria! Depois de muitas pedras no caminho, algumas lutas memoráveis, e sofrendo traições políticas desnecessárias, fui parar do outro lado do mundo no sentido Sul-Norte. Virei exilado religioso. Mas considero tudo como esterco, e digo que fui para tão longe por vontade de Deus, para ser apóstolo do Evangelho do nosso Senhor Jesus Cristo em terra estrangeira. Na perspectiva metodista/arminiana, a vontade de Deus é resultado de uma parceria humano-divina, onde a criatividade da gente somada à graça de Deus e ao poder do Espírito cria novos caminhos.

Fui ordenado em 2003 presbítero na Igreja Metodista Britânica. A Conferência primeira, que data de 1744 e cobre a Inglaterra, o País de Gales e a Escócia.

Servi num projeto ecumênico especializado em ministérios comunitário e inter-religioso chamado Grassroots*. Tive que aprender sobre o Islã. Hoje sou um de seus dois diretores presidentes. Logo depois de servir em Grassroots fui nomeado em 2001 para uma igreja tradicional no centro de Londres, que fica a uns duzentos metros de onde Carlos Wesley morou e perto de onde ele está enterrado. Aprendi a orar com os hinos que ele escreveu. Em Hinde Street Methodist Church não há culto sem pelo menos cantarmos um, dois ou mais hinos de Wesley. Há três cultos por domingo; em dois destes celebra-se o sacramento da Ceia do Senhor. A igreja tem classes metodistas tradicionais que se reúnem regularmente. Celebramos, nos anos de 2010 e 2011, os 250 anos de metodismo naquela área e 200 anos daquela Capela. Hinde Street Church é a sede de um ministério com moradores de rua. 

 Como começou o seu trabalho com o povo de rua?


Parte do meu pastorado em Hinde Street desenvolveu-se em relação à comunidade de rua. Fiz grandes amigos e irmãos entre estes. O ministério pastoral tem que ser um ministério missionário. Tornei-me capelão dos moradores de rua. Sou chamado de “Father Léo”, apesar de considerá-los irmãos. Batizei alguns, enterrei outros. Pela primeira vez, há agora membros da Igreja que não têm endereço. Demos entrevistas no rádio. Se vou pregar em outras igrejas convido alguns para dar testemunho. A Pastora Dilene Fernandes passou um ano conosco em Londres e fez um trabalho muito bom lá, tanto entre a congregação mais regular, como entre a congregação dos Sem Teto.

Não é estranho que haja metodistas sem teto? A Igreja Metodista não deveria apoiar os sem-teto que, após uma conversão religiosa, também poderiam vivenciar uma “conversão social”, sendo reintegrados à sociedade?

Acho sua pergunta, se posso dizer, carregada de uma perspectiva mais, como diriam os ingleses, main stream, "normal, aceitável". Jesus Cristo era uma pessoa sem-teto,  morava na rua e quando as coisas estavam bem, o mar estava pra peixe, ele ficava com amigos: na casa de Pedro em Cafarnaum, na casa de Maria e Marta e Lázaro em Betânia, na casa de Zacarias, etc. Mas Jesus mesmo não tinha onde reclinar a cabeça. Jesus era morador de rua e ensinava ao ar-livre.

Há uma provocação religiosa a nós, "normais" com endereço, que vem da condição dos que moram nas ruas e são felizes, bem-aventurados, mais livres. Os sem-teto são mais parecidos com Jesus. Não diria que todos são assim. A gente tem tanta surpresa quando convive com os destituídos: há solidariedade, amizade e amor.

Quais foram os maiores desafios ou dificuldades neste ministério e quais foram os seus maiores aprendizados com o povo de rua?

Dificuldade mesmo se dá com a política da sub-prefeitura de Westminster. A ênfase deles é de praticamente perseguir os Sem Teto. Daí, os trabalhadores que a igreja contrata para este ministério ficam confusos entre a política do governo local e a posição da igreja, que difere na intencionalidade das normativas estatutárias. Há pressão política e financeira. Num nível mais pessoal, não é fácil ver alguém que se conhece bem pegando comida no lixo. Choca e revolta. Mas é preciso respeitar as opções de vida do outro.

Um grande aprendizado é entender que andarilho pode ser peregrino cheio de fé e de conhecimento. Um dos amigos lá em Londres é um peregrino que vai aos lugares mais famosos de peregrinação da Europa Medieval como ato de fé e busca interior. Vai a pé ao Norte da Noruega, no lugar do martírio de São Olof. Vai a Santiago de Compostela na Espanha, etc.

Depois também aprendemos a sentir que o pão compartilhado ao redor da mesa e da conversa sobre a vida e o Evangelho pode ser uma forma de comunhão semelhante ao partir do Pão na Eucaristia.

Você diz também que choca ver um amigo pegando alimento no lixo, mas que é preciso respeitar as decisões do outro. Contudo, quem pega alimento no lixo fez realmente essa opção ou está sendo forçado pelo sistema social a agir desta maneira? No sistema social inglês, que você conhece, existiriam meios de reintegração à sociedade que são recusados; ou seja, há pessoas que optam por adotarem um estilo de vida homeless?


Há recursos para assistência social, agora mais escassos. A contrapartida é exatamente esta. A pessoa precisa aceitar as condições impostas para receber tal ajuda. Nada vem de graça. E para algumas pessoas elas já passaram desta fase de tentar ajustar-se às demandas da vida 'mais aceitável'. Assim há pessoas que optam pela vida sem casa. A rua é uma opção de liberdade. As bibliotecas são boas. Eles têm tempo de ler e estudar. São muito bem informados. Cultivam as artes e até ajudam outras pessoas como voluntários aqui e ali.

Há também pessoas que são doentes, psicologicamente falando. Neste caso o cenário é diferente. O governo pode mandá-los para o hospital a força. Mas tenta-se tolerar. A comunidade parece ser o melhor lugar para estas pessoas. A sociedade é plural.

Há outros que estão na rua por causa de uma crise ou outra. Aí é diferente. Precisam de ajuda prática e imediata.

A igreja tenta servir todos e valorizar a condição de cada um. É uma honra servir e ver a igreja com as portas abertas para o rico e limpo como para o pobre e, às vezes, não tão limpo assim.

Você está assumindo agora uma nova função na Igreja Metodista da Inglaterra: “Superintendent Minister”. Explicando para os metodistas brasileiros: o  cargo de Superintendent Minister é similar ao de bispo.   

Este é um debate importante para os Metodistas na Inglaterra: como fazer o sistema herdado de João Wesley e da Conferência, logo após os primeiros anos depois da morte dele, compatível com outros sistemas eclesiásticos. Quando Papa Wesley morreu, 1791, a igreja estava cansada do poder autoritário e queria um sistema mais igualitário. Assim a hierarquia após Wesley parece com uma panqueca. É achatada.

A autoridade maior é da Conferência. Isto leva a uma cultura da conversa, dos comitês. O discernimento é coletivo, colegial. Em poucas palavras este é o espírito do Metodismo britânico.

Assim procuramos adequar a estrutura a este espírito. Os salários dos pastores são iguais, independente do lugar em que estejam servindo. Um superintendente vai ganhar 7.5% a mais do que outros pastores. O que é um testemunho àquele espírito. Porém, não tenha dúvida onde o poder recai. Semelhante ao sistema romano-católico a igreja está baseada numa conexão muito forte, porém a igreja existe no local onde se expressa. O Superintendent Minister é a pessoa responsável por esta unidade (circuits) onde a igreja se expressa. Os anglicanos e os católicos o chamariam de bispo.

Há outras visões que pensam que o Chair do Distrito é o Bispo, ou que o Presidente da Conferência é o Bispo.

O mais importante é que tivemos um plebiscito e a decisão da igreja Metodista lá foi permanecer como está, com uma estrutura incompatível com os Anglicanos. A Aliança Metodista-Anglicana assinada em 2003 ficou assim dificultada.

Como será desenvolvido seu novo trabalho? Fale um pouquinho sobre essa mudança e quais são suas expectativas e projetos.

Depois de dez anos de ministério ali perto de Carlos Wesley, em Marylebone Village, que é muito “chic”, fui nomeado para uma igreja num contexto completamente diferente. Harlesden fica ao norte da mais conhecida Notting Hill. É um lugar de muita diversidade, e a igreja tem uma membresia de maioria negra, africana e caribenha. O local é notório pela presença de gangues.

Pretendo ser pastor da igreja, que dizem estar atualmente entre as grandes igrejas metodistas de Londres. Serei o Superintendent Minister. É uma igreja meio diferente, Pois quase não há mais Circuits de uma igreja só. Harlesden tem uma história singular de paixão evangélica e campanha social, especialmente, de combate ao racismo. Assumo em setembro. É um pouco cedo para falar. Mas vamos ver se será possível fazer um trabalho nesta direção mesmo, um ministério vibrante e comunitário. Vou procurar saber quais são os planos das entidades comunitárias locais em relação à violência urbana e ver como a igreja pode ser uma agência de resgate das pessoas e desarticulação das gangues. Pretendo encorajar a música, o ministério com a juventude e as classes metodistas. Um resgate da sacramentalidade seria importante, tanto nos cultos públicos como nos grupos menores. Sonho com peregrinação à Itália, trazer vinho espumante para ser consagrado no altar e compartilhado nos grupos de casa. Que festa! A festa ao redor da memória salvadora e transformadora do Cristo.

*Grassrots poderia ser traduzido, literalmente, para “raízes de capim”. O nome representa a filosofia da instituição, uma organização comunitária a partir da base da sociedade.


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