Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013
EECSN Blanches de Paula
Aceitar a morte. Viver o luto. Abraçar a vida
A morte tornou-se um tabu em nossa sociedade. Foi confinada às UTIs dos hospitais, escondida das crianças, apagada das conversas... Numa cultura que valoriza o prazer e o sucesso, ninguém gosta de se lembrar da existência de perdas. Mas elas existem e foram escolhidas pela pastora Blanches de Paula como tema de um doutorado em Ciências da Religião. Além de teóloga, a Revda. Blanches é psicóloga e professora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista. Nessa entrevista, ela fala como a comunidade de fé pode se tornar uma rede de apoio a quem sofre, colaborando com a formação de uma sociedade mais saudável. O título desta entrevista é o lema da organização não governamental portuguesa A Nossa Âncora (www.anossaancora.pt), criada para dar suporte psicológico a pais e mães enlutados. Esse lema resume o desafio do ser humano diante da morte: percorrer todas as fases do luto até aceitar a perda e abraçar a vida, com gratidão ao seu Criador.
Por que você escolheu o luto para tema de seu doutorado?
Há cinco anos tivemos um curso de aconselhamento sobre "tristeza e depressão", promovido pelo Instituto de Pastoral da Faculdade de Teologia. Convidamos Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da Universidade de São Paulo, para fazer a palestra de abertura. Ela falou sobre a dor da perda. Comecei a me interessar pelo tema e fui fazer um curso na USP como ouvinte. Na época, eu estava pensando em fazer doutorado na área de psicologia. Mas, depois, vi que seria interessante abordar este tema sob a ótica das Ciências da Religião.
As igrejas sabem como lidar com a questão do luto?
De maneira geral, temos muita dificuldade em lidar com perdas. Luto não é só quando morre alguém; sofremos perdas desde que nascemos: perda de emprego, divórcio, mudanças repentinas. Também há fases do desenvolvimento humano que envolvem perdas. Por exemplo: para chegar à adolescência é preciso perder a infância. Essas são questões existenciais que precisamos enfrentar. Saber lidar com o limite é saudável, não só do ponto de vista humano, mas também do cristão. Infelizmente hoje há tipos de teologia que incentivam mais o ganhar do que o aprender com as perdas e os sofrimentos.
Também tenho notado que as igrejas que passam por problemas de divisões ou grandes perdas de membros têm dificuldades em expor o trauma, discuti-lo abertamente. Passam-se 30 ou 40 anos e as pessoas ainda se lembram do ocorrido - não conseguem esquecer porque não tiveram condições de vivenciar o luto. Por isso, é necessário trabalhar uma maneira de fazer um aconselhamento pastoral mais "comunitário" - toda a comunidade tem que refletir sobre o significado da perda para sua experiência de fé e maturidade.
Como a comunidade pode ajudar o enlutado?
Já ouvi vários relatos de pessoas enlutadas que chegam a ter vergonha de demonstrar tristeza na igreja, pois ouvem frases do tipo "você tem que ter fé", "você tem que reagir".Mas o que a pessoa enlutada sente não é pecado, é uma reação esperada. Diante do luto ou da iminência de perda, existem vários estágios pelos quais se costuma passar: negação, raiva, barganha com Deus (negociações do tipo: "se eu sobreviver a esta doença, vou ser mais fiel"), depressão e, finalmente, a aceitação.
O que se pode fazer pelas pessoas que estão passando por estas fases?
A questão de negar o que aconteceué uma das mais desafiadoras: para enfrentar a realidade da morte de alguém querido, por exemplo, é importante se desfazer dos objetos da pessoa que faleceu. Alguém da igreja pode ajudar nesta tarefa. Também não se deve ocultar a realidade das crianças, usando expressões do tipo "seu pai viajou". A criança entende literalmente e ficará esperando o pai voltar. Algumas igrejas metodistas mantêm a tradição de fazer o "culto em memória". Acho que esse é um ritual importante para a família. Quanto à reação da revolta, é preciso dar o suporte da escuta, sem repreensão. Quando a pessoa consegue expor a raiva, ela tem condições de entrar em outra fase. Às vezes orar ou ficar em silêncio junto com a pessoa é a única coisa que podemos fazer. É preciso resgatar a dimensão terapêutica da oração. Deixar que Deus atue da forma que Ele quiser. Isso é importante para a pessoa que tenta "barganhar" com Deus. Ela precisa aprender a lidar com aquilo que não consegue mudar. Por isso, até nossa forma de orar deve adquirir um significado novo. Orar é dialogar!
E quanto à depressão, como é possível saber até onde ela é normal e quando já se tornou "doentia"?
A média de elaboração de todo o processo de luto (segundo pesquisas na área) é de dois anos, variando bastante de pessoa a pessoa. Um estado depressivo que se estende por muito tempo pode, de fato, ter se tornado uma condição patológica, ou seja, uma doença. Nesse caso, é necessário encaminhar a pessoa a um psicólogo ou médico psiquiatra - o que, para muitas pessoas, ainda é um tabu. Tem gente que se esquece de que Deus também usa os talentos dos profissionais. Contudo, eu defendo que a Igreja continue prestando assistência à pessoa enlutada. O/a pastor/a pode ser tentado a fazer o encaminhamento quando não tem coragem de enfrentar a situação. Há casos de pessoas que tiveram assistência da igreja nos primeiros dias depois da perda e depois se sentiram abandonadas. A presença pastoral em situações de perda é salutar quando evocamos a dimensão consoladora do cuidado de Deus.
Mas nem todo mundo tem aptidão para visitar ou falar com o enlutado, não é?
Isso é um fato que ocorre, também, no ministério de visitação hospitalar: nem todo mundo tem vocação ou foi devidamente preparado para saber o que falar, como se portar no ambiente hospitalar, etc. E para dar esse tipo de assistência também é necessário fazer uma auto-reflexão sobre as próprias perdas. Uma iniciativa interessante de algumas igrejas é a criação de grupos de suporte ao luto, muitas vezes coordenados por pessoas que já passaram pelo problema. O grupo é acionado quando morre alguém da comunidade e fica disponível para cuidar de todos os detalhes - desde ajudar no funeral até lidar com seguro, inventário, compra de alimentos e suporte emocional. A comunidade de fé pode ajudar muito neste momento. Precisamos lembrar que nossa teologia é baseada em Jesus Cristo, que chorou a perda do amigo Lázaro e se permitiu perder a própria vida, por amor à humanidade. Ao lidar com as perdas e com os sentimentos que envolvem esse fenômeno humano, Jesus nos encorajou a viver e descobrir a cada dia aquilo que podemos fazer hoje sem deixar para o amanhã. Aí está uma semente de esperança.
Suzel Tunes