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Imprensa e Religião
Folha de S.Paulo, 6 de setembro de 2009
Documentário mostra rotina do tráfico no Rio
Filme traz até depoimento de chefe do tráfico que controla 15 favelas na cidade
"Dançando com o Diabo" expõe a complexidade e contradições do universo de violência, do tráfico e da polícia, e a ação religiosa
RAPHAEL GOMIDE DA SUCURSAL DO RIO
O homem chega carregado à Assembleia de Deus Ministério da Restauração, em Senador Camará, zona oeste do Rio. Olho inchado, as feições deformadas, perna com fratura exposta, está inconsciente de tanto apanhar de traficantes. "Era para ter tomado logo um [tiro de pistola] .40 na cara, vendeu pó royal em vez de pó [cocaína]. Demos um pau mesmo, era para ter morrido, tapear os outros é motivo de cerol, cortar todinho e sumir", diz para a câmera, de cara limpa, Juarez Mendes da Silva, o Aranha, 28, chefe do tráfico de um complexo com 15 favelas na zona oeste do Rio e 150 "funcionários" armados, ao custo mensal de R$ 94 mil. Foi ele quem determinou a surra. Aranha tem tatuagens nos antebraços: em uma lê-se Jesus, na outra Cristo. Jura que pretende abandonar o tráfico para ficar com Jesus. Como controla tudo? "É Deus!" O documentário "Dançando com o Diabo" expõe a complexidade e contradições do universo de violência, do tráfico e da polícia, e a eventual libertação pela religião, em linhas tortas e tênues. Foi o correspondente do jornal britânico "The Guardian" no Rio, Tom Phillips, quem conseguiu duas coisas improváveis para um inglês: a partir do pastor Dione (Johnny) Santos, ter acesso a traficantes das favelas do Rio, como jornalista, e convencê-los a mostrar o rosto a um cineasta estrangeiro, Jon Blair, sul-africano naturalizado britânico. O filme saiu por US$ 500 mil e será exibido no Festival do Rio neste mês. Ao lado do fotógrafo e cinegrafista americano Douglas Engle -que já trabalhara no México e em El Salvador-, Phillips passou 18 meses visitando favelas da zona oeste e conquistando a confiança dos traficantes. Até que, há um ano, por 45 dias, uma equipe de seis pessoas teve acesso quase irrestrito às favelas da zona oeste. Parte do sucesso, deve-se ao pastor Dione, ex-traficante que comanda a igreja, a quem Phillips conheceu em fevereiro de 2007. O pastor acolhe vítimas de espancamentos: em vez de matar, "dão um pau" e os mandam à igreja. "Pela lei da favela, tinha de morrer. Liguei para o traficante e ele liberou", conta. O título do filme vem de uma frase do pastor, antes da conversão. "Ou eu danço com o Diabo ou caminho com Deus." É nesse mundo cinzento, oscilante, que vivem os personagens. Outro é o inspetor da Polícia Civil Vinícius Torres, viciado em tiroteios. Notabilizou-se ao aparecer nos jornais baforando charuto, após a operação do Alemão, que resultou em 19 mortos, em 2007. Histriônico, farda camuflada e chapéu, ele se apresenta. "Sou Torres Trovão, filho da tempestade, oriundo da tormenta, nascido para combater. A gente não quer confronto, mas quando estala o primeiro tiro, quer que nunca acabe. Tem essa coisa no sangue, não é genético, é espiritual." Com seu método, o pastor Dione promoveu a paz entre traficantes de favelas rivais e circula no submundo, orando e pedindo o abandono dessa vida. Os produtores do filme dizem que a aparente segurança "garantida" pelos traficantes não eliminava a tensão permanente do ambiente que descrevem como "pesado". Em uma visita, durante a invasão da favela do Rebu pela PM, Phillips teve de se abrigar sob uma mesa de sinuca. "Não tinha medo dele [Aranha], mas da situação. Andando de carro, pedi para ele não sair da favela, mas ele saiu. Depois, começou a dar cavalo-de-pau, não tinha medo de morrer. Ele dirigia a 100 km/h em vielas entre um muro e um posto. Disse que tinha família. Desci tremendo, e entornei uma cerveja. Eu chegava fritando em casa", diz Phillips. Aranha foi morto em março, pela PM. Os produtores defendem o papel do pastor. "É por isso o nome do filme, "Dançando com o Diabo': todo mundo se compromete um pouco. É complexo, nada é simples. A igreja evangélica é a única instituição que entra nesses lugares. O pastor faz bem em uma região onde não tem nada. Se não gostamos, por que não fazemos nada? Ele cumpre uma função importante, dá valor às pessoas, ajuda, faz", afirma Engle.
DANÇANDO COM O DIABO
Direção: Jon Blair Produção: Channel 4 e Canal Franco-Alemão Arte Duração: 1h44
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