Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

crianças que ferem pastor Daniel Rocha

Criança trabalhadora em fábrica de tecelagem

De alguma forma, que não sei explicar, Jesus exercia um fascínio sobre as crianças. Era mais do que ser afável para com elas,Ele compreendia o que era ser um infante, suas lutas, conflitos, impotência diante do mundo adulto dominado por intrigas, violência e incompreensões.

Um dia, essa criança que Jesus tanto preza, cresce, estuda, ama, e é admitida ao mundo adulto através de diversos ritos de passagem. Entretanto, "aquela" criança que existiu continua viva dentro de cada um. Às vezes sufocada, reprimida, outras vezes carente e expressando em novos cenários toda a dor que os primeiros anos de vida trouxeram.

Homens e mulheres que seguiram a Jesus, um dia também, foram crianças e enfrentaram as vicissitudes próprias da idade num mundo tão ou mais inóspito que o nosso. Fazendo um pequeno exercício de imaginação comecei a inferir como teria sido o período de infância de alguns personagens bíblicos, a partir de textos das Escrituras que falam de suas características pessoais. Afinal, adultos deixam rastros de sua criança em palavras, gestos e posturas por onde passam.

O primeiro que me vem à mente é o garoto Saulinho de Tarso. Imagino-o como um menino franzino e talvez doente, que não enxergava bem desde cedo; acho que desenvolveuum sentimento de inferioridade, mas viu nos estudos uma oportunidade de se destacar pois ele mesmo diz que no judaísmo "avantajava-se a muitos da sua idade, sendo extremamente zeloso das tradições de seus pais" (Gl 1.14). Ora, fico imaginando que tipo de garoto - mesmo naquela época - se enfurnaria nos estudos de forma tão açodada se não fosse para fugir de uma realidade desagradável?

Vejo Joãozinho, o mais jovem dos discípulos, se recostando ao peito do Mestre, expressando a necessidade de tocar e ser tocado, pois quem sabe teve um pai que nunca o abraçou nem o pegou ao colo, preocupado com os afazeres diários para sustentar toda a família, e menino sensível como era,precisava sempre de um abraço. Era ele quem se aconchegava a Jesus (Jo 13.23).Já velho, ainda percebemosessa sensibilidade no seu linguajar das epístolas, usando incansavelmente o vocábulo carinhoso de "filhinhos" e "amados".

Ao contrário do sorumbático João, quantas reprimendas o irrequieto Pedrinho não levou de seus pais, pois não parava, mexia em tudo, e arrumava confusão com seus irmãos com um temperamento intempestivo. E o pequeno Tomé? Assim como toda criança, depositava a mais completa confiança nos adultos, mas um dia foi humilhado e traído; e ele prometeu a si mesmo nunca mais confiar em ninguém, e desconfiar de tudo aquilo que lhe contam.

A mulher "pecadora" que ungiu os pés de Jesus, chorando e beijando, pode ter sido uma menina criada sem o amor e carinho dos pais, nascendo-lhe um sentimento de desvalor, uma carência de aceitação. Para piorar,na juventude muitos rapazes podem ter lhe procurado somente por sua beleza física, e ela nunca soube o que era ter uma relação de amor e companheirismo.... daí a necessidade de sentir-se bem quista por todos - nem que fosse por alguns fugazes momentos.

Na verdade a vida desses personagens bíblicos também tem um pouco de nossa história. Eles não eram personagens de ficção, mas homens e mulheres de carne e osso que enfrentavam seus problemas familiares, as doenças, a falta de recursos, assim como nós.

Tudo que foi doloroso na infância, e muito machucou, torna-se uma inflamação sempre latejante na alma. Então, machucamos a quem amamos, decepcionamos quem deposita confiança em nós e ferimos os outros com as nossas feridas. Por vezes valemo-nos de nossa história para justificar certos comportamentos inadequados. Quem tem ciúmes excessivos explica-se: "temo perder aquilo que amo, por isso não saio de perto"; o irascível tem na ponta da língua: "fui muito reprimido e nunca pude falar nada, mas agora chega"; quem tem muito apego ao dinheiro se autoexplica: "passei muita dificuldade na infância";quem desconfia do mundo: "nunca mais vão me enganar"....

O maior problema talvez não seja o que vivemos, mas quando aceitamos o comportamento que dali se segue, até com uma ponta de resignação, e não vislumbramos que possa ser diferente. Tornamo-nos, então, fatalistas, pois "o que é"já foi decidido lá atrás. Ao pensar assim não cremos na liberdade que Cristo traz, e perdemos a condição de homens e mulheres livres para tornamo-nos o "cão de Pavlov" condicionado para salivar toda vez que toca a campainha.

Há um que tem o poder de fazer novas todas as cousas. Deus re-constrói a nossa história a partir do material torto que lhe apresentamos. Não é por acaso que a conversão a Cristo é também chamada de "novo nascimento".Não é esquecimento ou amnésia do que viveu, mas uma re-significação do que passou e uma oportunidade de viver um novo começo. Não mais os olhos do ódio, da raiva ou vergonha, mas de uma visão sobre a vida a partir do amor de Cristo que sara as feridas, nos restitui a dignidade, traz segurança ao coração e liberta da servidão emocional do passado.É um caminho difícil, pois o atalho, o caminho fácil, é continuar repetindo indefinidamente a doença.

Quando me concedo a oportunidade de viver uma segunda infância - agora tendo Deus como "Abba Pai" - não preciso mais ficar preso a um passado doloroso. Quero ser um adulto vivendo como uma criança diante de Deus, uma criança que pula, dança, festeja, dá gargalhadas, chapinha nas poças d?água, e quando se cansa, corre para o colo do Pai.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

(Alberto Caeiro, em O Guardador de Rebanhos)

Pr. Daniel Rocha, Igreja Metodista em Itaberaba, SP

 


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