Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 20/09/2013

CHOSN Reflexão Sydney Farias da Silva

Liderança Espiritual e Evangelística

Houve um tempo em que o tema da liderança recebeu um forte acento nas reuniões de treinamento promovidas pelos setores de educação cristã. E não foi sem razão esse enfoque, uma vez que ele era um dos modismos na área eclesiástica. Novos modelos organizacionais exigiram capacidades que fazem diferença na competitividade e, consequentemente nos resultados.

Esse estudo, desde logo, mostrou que os (as) líderes demandavam não somente uma capacidade estratégica. E isso seria relativamente fácil de obter pela via educacional. Todavia, um bom líder também precisava de carisma excepcional. Aqui carisma era entendido como um conjunto de fatores psicológicos que eram capazes de convergir para si demandas de um grupo.[1] Assim, o surgimento do (a) líder deveria ser entendido dentro dos limites de, pelo menos, duas variáveis: Capacidade e carisma.O líder deveria fazer-se líder e o líder deveria ser feito líder por seu grupo.Do ponto de vista das ciências, o líder seria um fenômeno, psicológico, sociológico e político, ao mesmo tempo.

Algumas experiências, porém, apontam para questionamentos necessários que de certa forma também estiveram em pauta nos chamados treinamentos de lideranças. Fez-se uma diferença entre líder autocrático e democrático. A lembrança de Hitler, Mussolini, Jim Jones, Pinochet, Médice e, mais recentemente Bush, são traumas que impõem uma agenda mais específica quando queremos falar de liderança. Principalmente porque os sistemas de poder costumam sugerir crer que os líderes que eles produzem são mesmo aqueles precisamos. E nunca faltam os "marqueteiros" que ganham a vida vendendo sonhos de lideranças que nada representam além de vantagens para eles próprios e dominação e morte para os liderados. E isso não é privilégio das grandes organizações. Até uma diretoria de condomínio ou associação de bairro está exposta a esse fenômeno terrível de pessoas de reconhecida liderança, mas de resultados inconvenientes para o grupo que lideram. Às vezes, mesmo não intencional um (a) líder pode se tornar fator negativo em certo grupo. A nova comunidade cristã de Corinto teve graves problemas nas relações de seus membros com suas lideranças. Eles simplesmente aplicaram aos evangelizadores cristãos que passaram em sua comunidade a sua velha compreensão de liderança. Eles estavam transferindo seu compromisso com Cristo para os representantes dele, ao dizer que eram de Pedro, de Apolo de Paulo. Foram censurados duramente em uma carta, pois uma nova visão das coisas deveria surgir entre eles com o advento do Evangelho em suas vidas. O eixo central de qualquer e de todos os grupos cristãos sempre deverá ser Jesus de Nazaré, chamado o Cristo.

No contexto das comunidades cristãs ainda existe correlação entre o líder e o voto. Ou seja, as lideranças são reconhecidas por meio do voto. Neste caso, com a candidatura do(a) líder e o reconhecimento da comunidade cria-se a realidade democrática da situação e da oposição.Se isso tem sido bom na vida das comunidades cristãs vai depender da visão ideológica de cada um. O Novo Testamento testemunha que mesmo sem a conformação imperial que a igreja acabou assumindo e que perdura até hoje com a figura canônica dos "superiores", ela viveu sérios problemas de liderança e de grupos ganhadores e perdedores, incluídos e excluídos, sobreviventes e exterminados. Os credos que temos foram resultado da vitória de certos grupos que se intitularam autênticos e definiram os outros pela categoria de hereges, com direito à excomunhão e até morte dos perdedores.

Há uma segunda coisa que precisa ser mais bem mais esclarecida em nosso tema. Trata-se do nosso entendimento dessa palavra de grande importância para certos grupos cristãos: espiritual. Via de regra, ela é tomada pelo seu antônimo: carnal. E isso cria duas possibilidades que precisam ser consideradas, justamente porque trabalhamos com duas palavras iguais e que dizem respeito a sujeitos diferentes que são o espírito humano e o Espírito Santo. Em segundo, porque esse conceito de "espiritual" pode ser herdado de dois teólogos cristãos que seguiram vertentes diferentes para verbalizar suas reflexões. Ou entendemos "espiritual" no sentido dualista grego da teologia deTomaz de Aquino, explicitamente dualista ou supomos que "espiritual" deve ser entendido no sentido paulino do termo. A filosofia tomista se apoiou no pensamento aristotélico que via o ser humano composto de duas realidades que conviviam juntas, contudo que não se misturavam e eram irreconciliáveis, do ponto de vista da substância. Ou seja, entendia que o ser humano era feito de corpo e alma, um mortal e o outro imortal. O corpo era visto como a prisão da alma, propondo não a ressurreição do corpo, mas a imortalidade da alma. É interessante fazer uma comparação entre a morte de Sócrates, que acreditava na imortalidade da alma e a morte de Jesus de Nazaré, que acreditava na ressurreição do corpo, por ação restauradora de Deus.

Nos escritos do apóstolo Paulo, os conceitos de carnal e espiritual estão relacionados à vida na carne e a vida no Espírito, realidades que não dizem respeito à substância humana, mas aos podres aos quais a nossa vida se submete. Em Gl 5 Paulo fala das obras da carne e dos frutos do Espírito. Para ele o ser humano é um corpo com sua psique e seu sopro vital. É a partir desse conceito que ele desenvolve com clareza a doutrina da ressurreição do corpo (1Co 15). Era tão estranha ao mundo grego essa doutrina da ressurreição do corpo que Paulo foi abandonado pelos intelectuais que o escutavam no Aerópago grego, com exceção do zelador, de Damaris e poucos outros (At. 17.18,32-34)[2].Em nosso contexto cultural os espiritualistas é que fazem essa nítida separação entre corpo e espírito (alma). Um de meus objetivos neste trabalho é definir o conceito de "espiritual", de modo que ele esteja em acordocom a visão bíblica dessa realidade e que a meu ver nega a dicotomia espiritualista.

A terceira ênfase do tema proposto também precisa de algum esclarecimento inicial, embora ele seja objeto de grande ênfase na atualidade.No Novo Testamento não temos um único enfoque evangelístico. A causa disso é a pluralidade de "teologias" desenvolvidas em cada comunidade cristã que desenvolveu e registrou certas tradições sobre Jesus.[3] Em At 8.35 temos um evangelizador e sua mensagem enfatiza a visão de que Jesus é a pessoa histórica que encarna o servo sofredor de Isaías. Em At 17.18 temos outro evangelizador e outra ênfase. Ambos estão centrados em Jesus, mas o primeiro está interpretando Jesus como o Messias Filho de Deus e o outro como Jesus o Salvador que leva à ressurreição e à vida eterna. Tão grandes eram as diferenças de enfoques evangelísticos dos cristãos primitivos, que foi necessário um encontro de missionários evangelísticos para estabelecer um mínimo de conceitos básicos. Eles discutiam sobre o que deveria ser o conteúdo da boa notícia (evangelho), o que ela anuncia e o que ela denuncia. Que pessoas e que coisas deveriam estar incluídas nessa mensagem e que pessoas e que coisas deveriam ser excluídas.Passado o que se tem chamado de primeiro concílio cristão, ainda assim restaram diferentes interpretações. O está no registro de Atos 15, em que se evidencia que as tensões eram entre as comunidades e seus evangelistas, estabelece um mínimo no conteúdo da mensagem cristã. A meu ver o registro de Atos traduz o modo como a comunidade de Jerusalém viu esse núcleo. A outra visão, certamente da comunidade de Antioquia e seus missionários (de onde provinha Paulo), está registrada na Carta aos Gálatas 2.10. Fica claro nesse relato da decisão conciliara designação do evangelizador como alguém voltado ao anúncio do Reino de Deus para os pobres. Não há como negar que se compararmos o Evangelho de Mateus com o Evangelho de Marcos, a mensagem evangelística típica dessas comunidades tem, no primeiro caso, um forte acento na Igreja e nas "lideranças" apostólicas. Mateus acredita que Pedro receberá as chaves do Reino dos Céus O Evangelho de Marcos tem sua preocupação no Reino de Deus. Marcos vê um grupo apostólico pouco sintonizado com Jesus e Mateus vê Jesus sacramentando as declarações de Pedro, reconhecendo-as como provindas de Deus. Assim, antes de falarmos do evangelizador temos que desmistificar esses evangelizadores que são estrelas de um show e esses vendedores de sonhos, que não passam necessariamente pela postura ética e pela moralidade da justiça e da misericórdia. Essa é outra pergunta que me proponho a responder: "Que evangelizador é esse, qual a sua mensagem?

O líder

Uma leitura atenta do Evangelho de Marcos nos conduz ao fato de que na memória da comunidade cristã de Roma a pessoa de Jesus de Nazaré era a fonte mística de sua atividade misssionária (de sua Vida e Missão). Ele não é descrito no modelo do que poderíamos chamar de liderança. Marcos mostra que Jesus se recusou a ser líder (Mc 7.36; 8.30-31), nos termos em que psicológica e sociologicamente entenderíamos hoje. O mesmo pode ser dito em relação à missão que ele atribuiu às pessoas que escolheu para integrarem um grupo de convivência e de missão (Mc 6.7-13). Ele não os enviou a formar comunidades das quais seriam líderes, mas a anunciar o Reino de Deus e socorrer as pessoas em suas necessidades.

Essas pessoas entenderam-se pelos critérios políticos e sociológicos de liderança, segundo os critérios vigentes nas hierarquias conhecidas em seu contexto (do Império e do Templo). Chegaram a discutir sobre qual seria o líder por excelência, o maior de todos. Foram duramente censurados. Jesus chamou uma criança e colocou no meio deles e mandou os candidatos aos postos da hierarquia ir lá para o fim da fila (Mc 9.33-37). Em vez de Jesus aproveitar a sede de poder de alguns e colocar essa força a serviço do seu reino, como o faria o administrador moderno, como seus pró-ativos, ele recolocou a questão. A escola de Jesus não formava líderes. O Império Romano, sim, ele tinha seus líderes e dominadores.

Isso, todavia, não foi suficiente para os articuladores "de plantão". Dois deles tentaram outra via de acesso aos cargos de liderança. Foram direto ao ponto solicitando a Jesus a autenticação de sua liderança. Foram fisiológicos, como se costuma identificar hoje. Solicitaram os lugares da maior liderança.[4] É evidente que isso retrata a situação das primeiras comunidades e suas lideranças[5] que tinham perdido a verdadeira dimensão da vida cristã, como era o caso de Jerusalém que se considerava a comunidade dos membros da "família real". Todavia Jesus novamente recoloca a questão, mostrando que isso é prática de um velho tempo. Que a disputa pelo poder no grupo é coisa da nobreza, dos grandes e dos que dominam (Mc 10.35-45).

Está claro, pois, que no contexto do Evangelho temos que entender (e quem sabe substituir) o conceito de líder pelo conceito de servo. As comunidades cristãs precisam de um tipo especial de líderes. Elas precisam de servos e de servas. O centro desse serviço é a disposição de "dar a vida" para libertar (em resgate) outras pessoas. Nesse sentido Jesus ensinou a liderança às avessas, assim como ele foi Messias às avessas: O trono transformou-se em Cruz! E na cruz não há vantagem, nem lugar confortável. Há suor, sangue e morte. Foi por essa razão que Jesus indicou o caminho da renúncia e da cruz para os seus discípulos.

Não tenho dúvidas de que se Jesus quisesse ser Rei e transformar seus discípulos em líderes de seu reino isso teria sido perfeitamente possível. Mas ele sabia que essa era sua terrível e constante tentação, de modo que, quando entrou no Templo, ele não se apresentou como sumo sacerdote. Ele foi critico do Templo. Havia em Jesus alguma coisa que desestabilizava as lideranças do Templo. E isso não era o seu grupo, nem a sua organização. É que ele era a antítese do poder, ele era servo. Não era sacerdote do Templo, era profeta popular galileu.

No Evangelho de João, 13, Jesus não se posiciona para presidir um grupo. Ele lava os pés de seu grupo. Eles reclamaram porque se sentiram constrangidos a fazer o mesmo. Eles estavam fixos em seus planos de destacados líderes e tiveram de repensar as coisas. É possível que as atitudes dos companheiros que deixaram Jesus sozinho diante do sofrimento e da morte tenham algo a ver com essa lição constrangedora. Pois liderança eficiente e sucesso são fatores de um binômio que estão associados desde muito tempo, e sucesso foi uma coisa que não fez parte das preocupações de Jesus.

Os aspectos substantivos do líder necessário nas comunidades cristãs estão relacionados com a humildade e com o serviço. Do ponto de vista da visão empresarial de liderança, Jesus deixou muito a desejar. O abandono de Jesus por seus discípulos ficou tão evidente, que quando preso e julgado a autoridade que o julgou perguntou a ele onde estava o seu grupo. Ele nada respondeu. Ele não tinha um grupo. Ele não era um líder. Ele era servo. E servo não tem nada, a não ser o desejo de servir. Nas estruturas financeiras das empresas a medida qualidade do líder pode ser avaliada pelo que ele ganha. No projeto de Jesus o servo é avaliado pela sua capacidade oblativa, pelo que ele é capaz de fazer para servir.

Nos primeiros projetos de organização das igrejas, por voltas do final do primeiro século eram bem claras as orientações para todos os(as) pessoas cristãs que tem a missão de servir (no grego, diaconar): "Semelhantemente, quanto aos diáconos, é necessário que sejam respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados ao muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância, conservando o mistério da fé com a consciência limpa. Também sejam estes primeiramente experimentados; e, no caso de se mostrarem irrepreensíveis, exerçam o diaconato" (1Tm 3.8-10). E continua "O diácono seja marido de uma só mulher e governe bem seus filhos e a própria casa. Pois os que desempenham bem o diaconato [serviço] alcançam para si mesmos justa preeminência e muita intrepidez na fé em Cristo Jesus" (1Tm 3.12-13). Como se pode ver, as exigências do diácono são praticamente as mesmas do bispo (1Tm 3.1-7 e o serão para todos os servos e as servas.

Espiritual

O líder-servo requerdois qualificativo: espiritual e evangelístico. Primeiramente ele deverá ser uma pessoa espiritual. À luz do que dissemos anteriormente, essa espiritualidade nada tem a ver com espiritualismo. Ela é muito corporal, embora não deva ser carnal. Ela é uma prática de quem vive na "terra", com os pés bem firmes no chão da realidade humana. Mesmo quando o Novo Testamento parece nos exortar a buscarmos as coisas do céu, ele o faz no sentido de ser o mundo com Deus e suas exigências éticas. Esse servo ou essa serva, não vive com o pensamento no além, distante da vida onde as coisas acontecem. Sua espiritualidade está relacionada não com seu espírito (fôlego), mas com o Espírito Santo e sua poderosa ação na história humana. Sempre é bom lembrar que o projeto de Deus acontece na vida real das pessoas. Assim foi com Jesus de Nazaré. Ele era uma pessoa espiritual porque sua vida era sustentada pelo poder o Espírito Santo. Diferentemente de João Batista, Jesus mostrou-se uma pessoa envolvida na realidade dos seus semelhantes. Não foi uma pessoa do Templo, mas da rua. Não perdia uma discussão na praça, não perdia uma festa, considerava coisa séria visitar amigos. Ele tinha uma proposta política definida: o Reinado de Deus. E, por ironia ou não, Jesus não foi condenado e executado pelos romanos sob uma acusação política, relacionada com as coisas da terra e não com as coisas do além: Jesus Nazareno, rei dos Judeus!

Espero escapar ao reducionismo conceitual, oferecendo um parâmetro para a compreensão do entendo por "espiritual". Uma substituição que me pareceria bem mais próxima do que estou querendo dizer com essa palavra seria substituí-la por cristã. Quando falamos de um líder, no contexto das comunidades de fé estamos falando de um (a) líder/servo(a) cristão (ã).E porque julgamos essa palavra melhor? Porque ela mostra que a espiritualidade tem que ser compreendida em termos de discipulado. Antes de qualquer coisa o(a) servo(a) tem que ser um(a) discípulo(a) de Cristo, pois o discípulo antes de tudo é um servo de Cristo para a libertação da pessoa humana. A cruz, e não o lugar nobre é a vocação natural das pessoas cristãs (espirituais). E não a cruz por heroísmo ou martírio. A cruz para "regate de muitos". A cruz o preço pago pela libertação de quem está na escravidão. E quando relacionamos espiritualidade coma cruz não a estamos relacionando com o espírito, senão como o corpo e suas dores. Em uma de suas cartas Paulo lembra uma comunidade de cristãos que ele buscava conhecer "o poder de sua ressurreição, e a comunhão de seus sofrimentos,[6] conformando-me com ele na sua morte; para de algum modo, alcançar a ressurreição dos mortos "(Fp 310-11) e afirmava: "em nada serei envergonhado; antes, com toda ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte" (Fp 1.20). Assim a cruz na vida do(a) servo(a) longe de ser um símbolo românico e belo é a realidade de um compromisso assumido completamente.

Mais profunda e completa é a exortação que Paulo faz aos romanos quando lhes enviou uma carta específica. Ele fala em tornar o corpo sagrado quando diz: "apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional" (Rm 12.1). Fica, pois, claro que a fé cristã não é espiritualista, mas profundamente corporal. E assim entenderam os cristãos primitivos que conservaram uma refeição em honra ao corpo e ao sangue de Jesus. Estranhamente, quando se esperaria na cultura grega que os cristãos evocassem o espírito de Jesus, eles evocavam o seu corpo. Tanto que foram confundidos com certos praticantes de ritos religiosos que cominam a carne das pessoas sacrificadas como bode expiatório (normalmente moças e crianças).

Por isso preocupei-me de fazer uma diferença entre espiritualismo, que é uma concepção grega e espiritualidade que é uma concepção cristã. E a diferença entre uma e outra reside em que a primeira supõe uma existência do espírito independente do corpo e a outra requer a existência de uma unidade indivisível do ser humano. A primeira supõe uma abstração do corpo e a segunda supõe uma sacralização do corpo. E os metodistas nunca podem esquecer que a experiência religiosa de Wesley, entendida como experiência espiritual foi descrita em termos corporais: "Senti meu coração estranhamente abrazado".

É claro que esse modo de ver as coisas desloca o nosso tema do líder espiritual para a espiritualidade do servo. Tudo na vida do servo é feito no desejo de fazer do corpo instrumento de missão. Todas as áreas da vida seguem a espiritualidade do corpo sobre o altar. Corpo e mundo, vida e experiência histórica determinam as alavancas de nosso serviço. É oportuno lembrarmos oPVMI. Ele afirma com clareza que na vida do cristão duas linhas conduzem a corrente de sua espiritualidade: Os atos de piedade e as obras da misericórdia. Manter o equilíbrio dessas duas dinâmicas é nosso desafio permanente. Contudo, nem a piedade (que é a santificação do soma) e muito menos as obras da misericórdia podem acontecer sem o uso racional de nosso corpo.

Todavia é preciso cuidado para não transformar essa espiritualidade em auto-suficiência. A espiritualidade do servo acontece em meio a uma nova realidade que existe no mundo: a Vida do Espírito! O poder de ser servo é uma obra do Espírito Santo na vida humana. É um poder concedido. Em Gl 5 temos descritos os frutos do Espírito. A vida cristã consiste em o ser humano, na sua integralidade, viver a novidade de vida, livre dos poderes deste mundo tenebroso do mal, na liberdade do Espírito. Liberdade que não é para a concretização de nossos planos, mas para fazer a soberana vontade de Deus.

A mística cristã do serviço decorre do parâmetro de Jesus de Nazaré. É nos evangelhos que vamos encontrar o relato de como isso aconteceu na prática cotidiana. É muito inspiradora a "nuvem" de testemunhas de que nos fala o livro "Aos Hebreus". Mas no modelo da espiritualidade cristã está na vida de Jesus de Nazaré, conforme nos é narrado nos evangelhos. Ele indicou os rumos e encarnou a forma de ser servo.

A espiritualidade de Jesus passava por algumas coisas essenciais a quem deseja, hoje, ser servo dele no mundo, e realizar a missão recebida. Ela começa pela experiência do chamado. Ser uma nova pessoa em Cristo, segundo a Carta aos Efésios é viver de forma digna da vocação recebida.Todos e todas, antes de serem servos e serem servas, têm suas vidas mudadas pela conversão de objetivos e valores em atendimento ao chamado de Deus à vida no seu Reino. Dura pouco o entusiasmo de servos(as) oferecidos, que aderem ao serviço pelo altruísmo de uma nobre e edificante missão. E Jesus conhecia bem esse detalhe, pois teve a experiência "fundante" de seu serviço e proporcionou aos seus discípulos a oportunidade de responderem em fé ao desafio do tempo de Deus eu chegara com o anúncio de seu Reino. Jesus teve essa experiência por ocasião do batismo. Não é que ele até ali não vivesse no Espírito, mas naquele momento ele se apropriou da consciência de ser Filho de Deus, guiado e sustentado pelo Espírito Santo. Sem essa experiência pessoal de vocação os servos não têm têmpera, resistência para continuar. Logo acabam líderes que se mantém a custas de manobras políticas. Falta-lhes o sentimento de pertença ao Reino de Deus. A principal autoridade evocada por Paulo para o seu ministério era a sua experiência na estrada de Damasco. O Missionário Paulo não apareceu do nada. Ele teve seu tempo e lugar de despertamento e isso dividia a sua vida em antes e depois Muitas pessoas comportam-se como quem faz um favor à causa do Reino de Deus. Quando não se elegem para os cargos que cobiçam, sentem-se desprestigiados, como se a garantia de Sua missão fosse o grupo que o elegeu. O servo participa da festa, mas ele tem que agradar ao seu senhor.Servo autônomo, por vontade sua está somente a serviço de sua vaidade.

Quando falamos desse tema temos sempre que nos lembrar deJesus e de suas experiências. Ele, depois de chamado e de selado por meio do batismo, foi para o deserto. Lá ele foi tentado (Mc 1.9-12) por Satanaz. Conforme especificam os outros evangelhos sinóticos ele esteve diante de duas alternativas. Uma era ser autônomo, e fazer de sua missão uma escada para o sucesso, pra postos de honra cobiçados por todos. Outra possibilidade que Jesus tinha diante de si era assumir o serviço como servo de Deus para o bem do mundo. Neste caso teria de ir de encontro aos poderes estabelecidos, anunciando o poder supremo de Deus e a urgência de fazer a sua vontade. Em Lc 4.16-19 Jesus anuncia a sua opção. Ele decidiu ser fiel à sua vocação e andar do modo digno desse chamado. Por conta disso ele morreu crucificado.

No Novo Testamento a palavra serviço recebeu o sentido de ministério, ou diaconia. Com os primeiros problemas comunitários da Igreja de Jerusalém foram escolhidos sete pessoas para servirem as mesas( e não eram mulheres). Os diáconos não eram pessoas para dirigirem instituições ou exercerem atividades seculares Eram pessoas que serviam as mesas. No mesmo texto usa a palavra diaconia para o ministério dos apóstolos, relacionado com a oração e apregação. Não importa o setor da atividade, se a exemplo de Marta ou a exemplo de Maria. O importante é compreender que essa atividade deve ser exercida no Espírito e em serviço.

O servo, a semelhança de Jesus, é uma pessoa do Espírito Santo. Não é somente chamada por ele, mas sustentada e capacitada por ele. O serviço é uma delegação de serviço. E ele é feito no poder do Espírito Santo. Jesus anuncia em Nazaré que o "Espírito Santo está" sobre ele. E ao se despedir dos discípulos, conforme o Evangelho de João (Jo 19.21-22), Jesus lhes concede o Espírito Santo para a realização da Missão. O Espírito é a herança dos servos e das servas. Os ministérios e os ministros(as) não são institucionais, mas carismáticos. "percebe-se até que ponto uma oposição entre ministérios "carismáticos" e "institucionais" é estranha ao pensamento de São Paulo: Para ele, todo ministério é um dom feito pelo Espírito Santo à Igreja." [7]

Evangelístico

O servo está a serviço da missão. Não existe, todavia, uma missão dos homens outra dos jovense outra das mulheres. Existe uma missão de Deus, cujo teor é anunciar o evangelho às pessoas. De modo que o(a) servo(a) sempre terá em sua vida estes dois pólos, Deus e as pessoas a quem Deus ama (o mundo). Assim como a experiência de pertença ao Reino de Deus por meio da vocação, o sentimento de pertença ao povo é fundamental ao serviço cristão. E não se trata de pertencer somente ao povo cristão ou a Igreja. É pertença ao povo secular. A experiência com Deus e sua ordenação para ministrar em seu nome tem como conseqüência primordial o sentimento de solidariedade e compaixão para com aqueles que "não sabem discernir entre a mão direita e a esquerda (Jn 4.11). É esse sentimento que comanda a missão. Depois de nos convertermos a Deus temos que nos converter ao povo. Um dos lemas da Igreja Metodista incluía a expressão "a serviço do povo". No caso de Wesley essa experiência foi dramática. Ele se voltou para o povo quando as portas dos templos se fecharam para ele. Isso o remeteu às ruas, à boca das minas, às portas das tabernas. No caso de Jesus, as coisas aconteceram ao natural. Ele era um camponês e foi a essa gente que ele se dirigiu. Ao contrário de João Batista que ficou no deserto e esperava que as pessoas fossem ouvir a sua mensagem, Jesus foi um itinerante que convidou pessoas e as constrangeu a essa itinerância. Sempre há que nos perguntarmos o que fez Jesus ir em direção às pessoas. O evangelho tem uma resposta simples para isso. Ele tinha uma novidade a contar ao mundo que respondia às suas principais necessidades: saúde, pão e liberdade. Anunciar essa mensagem era o seu compromisso primeiro. A cura, o alimento, o chamado à liberdade simplesmente eram para ele instrumentos que sinalizavam a vinda do reino de Deus. O que desloca o servo para fora da "segurança" dos templos é a força centrífuga que o Espírito Santo imprime à evangelização. Resumindo, milagre e refeição eram ferramentas de anúncio do Reino de Deus. Todavia nada disso aconteceria sem algo que era fundamental em seu comportamento evangelístico: misericórdia (também descrita como compaixão). Somente esse sentimento faz com que pessoas saiam para anunciar. "No Novo Testamento, a primeira tarefa concreta do ministro é a de continuar o anúncio da Boa Nova, inaugurada por Cristo."[8] Nestes últimos anos tem sido redescoberta uma palavra auxiliar da evangelização: pastoral (que não pode ser confundida com pastorado). Ela se reporta à responsabilidade que os discípulos e discípulas de Jesus têm de pastorear o mundo. Nos termos do evangelho, o povo está sujeito a duas ações: dos ladrões e a do pastor. Ladrões são pessoas que se servem do povo. Pastor é uma pessoa que dá sua vida pelo povo. Infelizmente temos assimilado a evangelização pelo seu aspecto menor que é a proclamação verbal. Mas ela compreende mais do que isso. Ela compreende solidariedade com as pessoas que são vítimas em um mundo de poderes que excluem e matam. Talvez isso responda sobre porque as chamadas "séries de evangelização" se tornaram simples ação marqueteira. Pregadores que vinham de longe faziam discursos sobre a vida de pessoas com as quais não tinham nenhum compromisso. A verdade era que quando o povo precisava dos evangelistas visitantes dando sua vida pelo povo não os encontravam. Nas comunidades locais que tinham um efetivo compromisso solidário com o povo, ainda havia alguma continuidade desse programa e muitos frutos eram recolhidos. O anúncio do reino de Deus requer despojamento solidário. A justiça do Reino passa muito menos pela lei do que pela misericórdia. A vinda do Reino de Deus não depende de nós. Ele está vindo. Depende de nós convidarmos as pessoas a aceitar a misericórdia de Deus e renovar suas vidas nessa abundante graça. O evangelizador não tem dúvidas sobre a vontade de Deus. Ele sabe que a Vida abundante e nada menos que isso é a vontade de Deus. Em face do caos em que o mundo se encontra as pessoas vêem-se sem alternativas. Algumas escolhem a lei da selva para sobreviver e geram a violência que está aí estampada nos jornais. Outras escolhem a alternativa da fuga, seja por meio espiritualidade alienante seja por meio daalienação das novelas, onde elas se projetam e sonham viver aquelas aventuras. Para o evangelizador não haverá paz enquanto não correr a justiça como ribeiro. Ele sabe que isso só pode vir por meio do Reino de Deus e ele convida insistente e diligente a todos e todas para que aceitem a oferta da graça de Deus. Ele está com o povo onde o povo estiver, participando de suas lutas por melhor qualidade de vida, pois ele sabe que é isso que deus quer para todos e todas.

Conclusão

A liderança espiritual e evangelística é definida a partir do serviço sob a ação do Espírito Santo com vistas ao anúncio do Reino de Deus. Ela não se sente chamada a estar na frente de um grupo, mas integrar o corpo vivo de Cristo ministrando em seu nome e sob o seu poder. Ela sabe queo corpo já tem uma cabeça, que é Jesus. Não temos no evangelho ordens sacras ou leigas, primados nem autoridades, além da graça de servir e dar a vida pela causa do Reino de Deus e da realização plena de sua vontade. A ordem verdadeiramente evangélica é amar e servir e o povo realizando a missão de Deus. O mais que vier a se configurar no cotidiano da Igreja, por meio do voto ou do sorteio, será pequeno diante desse princípio norteador da missão: ministrar em nome de Deus para o povo.

Sydney Farias da Silva

[1] Diferentemente dos carismas concedidos pele Espírito Santo para o exercício da missão.

[2] Areópago pode significar a colina onde estava a agora, ou o próprio tribunal de Atenas.

[3] De fato, seria melhor falar em cristianismos primitivos ao invés de cristianismo primitivo.

[4] Direita e esquerda, justiça e economia.

[5] Gl 2.6,9

[6]O grifo é meu

[7] LEMAIRE, André. Os Ministérios na Igreja, p. 28

[8] LEMAIRE, André. Os Ministérios na Igreja, p.33.


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