Publicado por Sara de Paula em Pastoral Indigenista, Geral - 13/04/2016

Blues da piedade em versão Guarani-caiuá

O casal Paulo e Ima, pastor e pastora da Missão Metodista em Tapeporã, propõe uma interessante sugestão de leitura para a Semana Indigenista. 
 
O texto "Blues da piedade em versão Guarani-caiuá", é uma versão adaptada da música de Cazuza, por Fernando Gabeira, para retratar a realidade e desafios vividos pelos povos indígenas. 
 
"Este texto foi produzido logo após a visita de Fernando Gabeira junto com outros/as parlamentares por ocasião da CPI da desnutrição, que na época provocou grande alvoroço em nossa região desencadeando um grande corre entre imprensa e políticos", conta o casal. 
 
O texto foi publicado no veículo Dourado News, em 27 de março de 2005, mas infelizmente ainda reflete problemas atuais vividos pelo povo Guarani-caiuá. Apesar dos problemas diários, o crescimento do povo e da missão continua. "Nós quando morremos não somos enterrados, somos plantados e nascemos mais fortes", é a afirmação de um dos guerreiros. registrada pelos missionários. 
 
No texto em questão, Gabeira também faz referência do Cerro Marangatu e Campestre no trecho "E se sobrar piedade, Senhor, que a dirija mais ao sul, para justiça branca em Antonio João-MS". A região ainda registrou conflitos no ano passado, com trágicas consequências, mas não há atitudes efetivas para mudar essa situação. 
 
Por causa de tantos problemas, a Missão Metodista em Tapeporã levanta uma importante questão. 
 
Então é 19 de Abril, o que celebrar?
 
Celebrar que apesar dos pesares, eles continuam morrendo, nascendo e lutando, e contra o diagnóstico de muitos e desejos de tantos, que no ano 2000, já não haveria mais povos indígenas no Brasil, porque seriam integrados ou "desintegrados" (mortos), mas sobreviveram. Neste ano de 2000 contavam em torno de 120 mil indígenas, hoje já se fala em 800 mil. Mas eles continuam pedindo PIEDADE para uma população que na época do "descobrimento" calculava-se em torno de 8 milhões.
 
Você pode ler mais sobre o serviço prestado na região, e acessar o álbum de fotos, clicando aqui.
 
Confira abaixo o texto na íntegra, e interceda para que a Missão Metodista Indigenista continue fazendo diferença em Mato Grosso do Sul, e em todo território brasileiro. 
 
 
Blues da piedade em versão guarani-caiuá
 
Se cantassem o blues da piedade, os guaranis deixariam de fora os que cometem apenas pecadilhos. Como dizer que cocar de índio rende anos de má sorte para político que o usa. De fora, ficariam também os editores que consideram índio assunto chato e, às vezes, revestem o extermínio de uma suave camada de silêncio.
 
Nem os bandeirantes que mataram mais de meio milhão de guaranis devem compor esse blues. Piedade se pede, Senhor, para essa gente do governo que viu o índice de mortos subir de 99 para 143 por mil recém-nascidos e resolveu sentar em cima da notícia, sem perceber que sentavam em cima de uma baioneta que iria, fatalmente, furar suas bundas.
 
Piedade Senhor para a Funasa, que ameaçou funcionários de demissão, que fabricou os indefectíveis abaixo-assinados de apoio ao chefe. E, se sobrar piedade, não esqueçamos do prefeito de Dourados, que tinha medo da repercussão da notícia entre os investidores de fora; do Ministro da Saúde, que considerou um aumento de mais de 30% uma normalidade estatística.
 
Mas a bondade divina deve se concentrar naqueles que disseram que a culpa era dos índios, que sua cultura obriga alimentar as crianças por último, como se fossem sequer uma espécie preocupada com sua continuidade. Uma prece anônima por aqui pede piedade também para os que fazem seminários quando surgem as mortes; para os que criam comissões para constatar "in loco", para os que dizem que estão providenciado, para esses fanáticos pelo gerúndio. Reuniões, cafezinhos, palavras mágicas como estruturante, seres animados como propostas que dialogam, conferências, reuniões e os guaranis continuam morrendo.
 
Uma grande dose de piedade, é claro, para quem cercou 11 mil pessoas em um espaço de 3,5 mil hectares, ignorando os laços da cultura com a terra, um lugar onde a pessoa pode viver como ela mesma. É preciso piedade não só para os que cercaram, mas para os que mandam mensagens sinistras, pelo sangue e pela boca. Piedade para os plantadores de soja que borrifam suas lavouras com veneno e deixam que o vento traga para a aldeia um ar pestilento, um peido tóxico.
 
Piedade para os que trouxeram o vírus da Aids e para os que jamais conseguiram colocar de pé um projeto para preservar e cuidar dos que se contaminaram. E piedade para os vendedores de cachaça, que vendem um quase álcool, esmagando a aguardente tradicional, a chicha, feita da fermentação de batata, milho e mandioca.
 
Piedade para os brancos da Funai, que designaram um capitão, ignorando as 44 lideranças familiares, para os capitães que ajudaram a acabar com os rezadores, queimando suas tendas. Sobretudo, piedade para os brancos que constroem capelas, hospitais e os obrigam a considerar as doenças apenas do ponto de vista médico.
 
E se sobrar piedade, Senhor, que a dirija mais ao sul, para a Justiça branca em Antônio João, na fronteira com o Paraguai. Os ancestrais guaranis têm 40 mil hectares, mas só podem usufruir deles se o presidente assinar a homologação de suas terras. Os juízes querem expulsá-los dos últimos 26 hectares, onde resistem à espera de uma simples assinatura, de quem muito prometeu e desapontou os índios.
 
Piedade para os pecados mais sutis, como o do homem comum que vê o maior grupo indígena do Brasil como um bando de vagabundos. Ele não sabe, Senhor, que eles trabalham nas usinas de cana, são explorados no acerto de contas com o armazém do dono. Ignora que os aposentados têm seus cartões retidos pelas mercearias e que só vêem parte de sua renda.
 
Crianças com paralisia cerebral, sem tratamento adequado. Lábios leporinos esperando correção. Meninos sem pálpebras, tuberculose, ainda que decaída. Trezentos subnutridos na aldeia, Senhor, e apenas um nutricionista correndo como louco. Equipes de saúde incompletas, cestas básicas seletivas.
 
E é preciso piedade, Senhor, porque toda essa gente quer água e seus rios secaram sob o bombardeio de lavouras predatórias. Piedade para os brancos que não conseguiram R$ 2 milhões para resolver o problema. Dois milhões tomamos nós, os deputados, em café e água mineral, enquanto discutimos os destinos do país.
 
Quem pede piedade são os suicidas guaranis, cansados do longo combate, enforcados nos galhos das árvores que sobrevivem. São os desesperados que se alçam ao céu pedindo pelos que ficaram, pois a terra que era o lugar de ser como se é, tornou-se a terra do mal, a moagem de sua cultura, o extermínio de sua gente.
 
É preciso muita piedade, Senhor, pois em seu nome falam 25 religiões por aqui, numa gincana pelas almas nativas. E como nada acontece, talvez seja melhor, Senhor, com o que pouco restou de tanta prece, ter um pouco de autopiedade.
 
Publicação original do texto: Dourados News

Tags: pastoral indigenista, povos indígenas, guarani-caiuá, missão, Tapeporã


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