Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Biodiversidade

OU A RESPONSABILIDADE PELA DEFESA DA CRIAÇÃO

Existe relação entre a Missão de Deus de implantar o seu Reino no mundo e a questão da defesa do meio ambiente? Existe uma responsabilidade ecológica da Igreja?

Bem, se tomarmos o sentido amplo do Evangelho (Evangelho integral) veremos que sim. Pois a salvação de Deus não é apenas aquela que acontece depois da morte do ser humano, mas uma salvação que se inicia aqui e agora nesta vida. Hoje não há dúvidas sobre o desejo, o poder e o serviço contínuo de Deus pela salvação do homem. A grande questão é compreender a abrangência da salvação. Não queremos entrar aqui nesta discussão, mas apenas defender a compreensão que o Evangelho é a salvação não apenas da pessoa, mas também da natureza, de tudo que foi criado.

Se olharmos atentamente vamos perceber que o pecado humano descrito em Gênesis 3 provoca no mundo a quebra da harmonia e da comunhão. Quebra-se a comunhão com Deus Criador, com o próximo, com a natureza e do ser humano com ele mesmo. Gênesis 3, podemos dizer, é um retrato do mundo onde as relações de harmonia foram quebradas. Usando esta concepção, o biblista Carlos Mesters, no livro "Paraíso Terrestre - saudade ou esperança?" aponta algumas ambivalências ou contradições de nossa vida:

a) dominação da violência e da vingança (Gn 4:8; Gn 4:24);

b) Dominação da magia e da superstição que gera corrupção generealizada (Gn 6:5);

c) Dominação universal da divisão, confusão e dispersão (Gn 11:9; Gn 11:4);

d) Ambivalência do amor humano, que passa a ser dominador (Gn 3:16);

e) Ambivalência da própria vida (Gn 3:19);

f) Ambivalência da terra que só produz espinhos e carrapichos (Gn 3:17-18);

g) Ambivalência do trabalho que gera cansaço e rende pouco (Gn 3:17-19);

h) Ambivalência dos animais, que passam a ameaçar o homem (Gn 3:15);

i) Ambivalência da religião, que de alegria e esperança passa a ser medo e culpa, coisas opressivas (Gn 3;10).

Ainda segundo o biblista, olhando o capítulo 2 de Gênesis, poderemos ver qual era o projeto de Deus para o ser humano, seja o homem do passado, seja o de hoje:

a) Relação de marido e mulher sem dominação, relacionamento entre as pessoas de paz e igualdade (Gn 2:18; Gn 3:23; Gn 2:24);

b) A vida não morre, graças ao dom gratuito de Deus. Deus dá vida através da "árvore da vida" colocada a disposição do homem no meio do "jardim" (Gn 2:9; Gn 3:22);

c) A terra é fértil, produtiva e irrigada (Gn 2:9-10);

d) O trabalho não é motivo de opressão, faz parte da vida (Gn 2:15);

e) Animais e homem vivem em harmonia, sem serem ameaças uns aos outros. (Gn 2:20).

f) Deus e o homem são amigos. Convive com ele sem que sua presença gere medo (Gn 3:8-11).

Para Carlos Mesters o pecado humano não gerou apenas a contradição entre Deus e o ser humano, mas, como já dito, entre o ser humano e o meio ambiente, entre o ser humano e outro ser humano. A contradição passou a ser parte do meio ecológico, do meio social, dos valores, da cultura. O "oikos" (casa) foi desorganizado, gerando dominação e conseqüentemente conflitos e destruição. Mas, por outro lado, o Paraíso não é algo que apenas aconteceu no passado. É um desafio para nós hoje, deve ser nosso futuro. Ou seja, a vida boa e justa, com harmonia entre tudo que foi criado, não é apenas um idílio do passado, mas uma proposta para o futuro. Uma causa para o homem, uma causa para a Igreja.

 

A capacidade do ser humano para destruir

Basta um olhar a nossa volta que identificamos o poder destruidor do ser humano. Muros pichados, janelas depredadas, matas queimadas, água poluída, lixo pelas ruas... O homem criado a imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27) recebe um ambiente (oikos - casa) para habitar e ser feliz. É o pecado que introduz toda a desordem no meio ambiente.

O fator "desobediência", ou seja, a quebra de regras quanto ao funcionamento do ecossistema pode gerar a morte. A morte enquanto rompimento da relação do ser humano com o seu Criador.

Como conseqüência, nasce uma hostilidade entre o ser humano e a natureza. Haveria inimizade entre a mulher, a serpente e suas descendências. A mulher teria dificuldades para conceber e dar à luz seus filhos. O homem, por sua vez, teria dificuldades com a terra. A quebra das regras da própria subsistência é a revelação de que o ser humano continua a desenvolver sua capacidade para destruir. Uma das primeiras agressões à natureza após a desobediência foi a morte de Abel. Caim matou seu irmão, o chão teve que "abrir a sua boca" para receber o primeiro sangue derramado, o que para a Terra, foi uma espécie de poluição (Gn 4.11).

Assim, o ser humano foi revelando sua capacidade de destruir ao romper sua relação com Deus e consigo mesmo. Ao romper sua relação com Deus o ser humano, numa tentativa de ser como Deus (Gn 3.5), o homem anula a soberania de Deus. Constitui-se o centro do universo, e não parte dele, explorando as coisas criadas como se nada fossem em si mesmas e sobre elas tivesse autoridade absoluta.

Esta relação de subjugar a natureza, como se ela fosse inferior, é que conduz à falha da ética ambiental.

 

A responsabilidade ecológica da Igreja

A responsabilidade ecológica da Igreja é garantir que a vontade de Deus seja ouvida, entendida e estabelecida. Portanto, o entendimento e a responsabilidade ética da Igreja para a questão da ecologia não pode se limitar apenas na proteção da fauna, da flora e dos ecossistemas, mas deve visar à superação teológica e cultural da dicotomia entre o homem e natureza ("antropocentrismo arrogante"), de modo que haja uma consciência ecológica, ética e cristã de que o ser humano é parte da fauna e está inserido na criação como parte dela, com privilégios e também com as responsabilidades inerentes desses privilégios.  Ou seja, tão justa quanto a preocupação com preservação de espécies como tartaruga-pente ou mico-leão-dourado ou jacaré do papo amarelo, deve ser também a preservação da espécie humana.

Embora na teoria tudo esteja interligado, muitas vezes na prática, o homem, particularmente o pobre, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, vítima da fome, da guerra, etc... no tem sido encarado pela ética cristã inserido dentro de um contexto ecológico no sentido de que sua espécie é não apenas a que maior dano causa ao meio ambiente mas também a que também sofre esses danos. É importante que haja preocupação com a preservação também de sua vida, e da qualidade de vida. Não apenas com sua sobrevivência, com seu cativeiro na miséria e abandono. É importante propugnar por políticas públicas que lhe possibilitem moradia, trabalho, subsistência. A ética cristã para a ecologia tem de defender uma coisa maior e que às vezes não parece inserida também na preocupação ecológica: relações justas e solidárias que humanizam cada vez mais os chamados "seres humanos". É justamente a desumanização que nos leva a relações opressoras com o próximo, com a natureza e conosco mesmo.

Miséria, machismo e racismo, por exemplo, não devem ser vistos apenas religiosamente como pecado ou socialmente como situações de relações opressoras. Devem ser vistos também eticamente como causa a ser superada, como situação de agressão à vida coletiva, à "fauna" humana, ao meio ambiente.

Embora para nós cristãos a fé cristã não se reduza apenas a uma ética, entendemos que ela tem a exigência de uma ética, de um comportamento ético. Por isso a tarefa de evangelização confiada por Deus à Igreja implica também na vivência, no anúncio e num desafio de uma ética para o mundo.

Esta "evangelização ética" (evangelização promotora da ética cristã) condena o mundo em suas relações opressoras e destrutivas, propondo o estabelecimento de relações de misericórdia, justiça, solidariedade e paz. De modo que, se o pecado humano envolveu toda a criação num caos e em desarmonia, a ética cristã deve ser praticada de modo também a alcançar relacionamentos misericordiosos, justos, pacíficos e solidários com toda a criação, restabelecendo a harmonia, a amizade e a cooperação. Isso implica em mudança de valores, em mudança na cultura. Portanto, mais que diagnosticar a necessidade da proteção ambiental é necessário o prognóstico da mudança sócio-cultural, e tanto quanto refletir, é fundamental uma ação ampla. A "evangelização ética" além de alcançar os indivíduos, deve também "evangelizar eticamente" as instituições e estruturas sociais e a cultura, ou melhor dizendo, as diferentes culturas.

"Evangelização ética" no sentido em que estamos usando neste texto implica e revela a responsabilidade e a participação ecológica da igreja. Mas o que vem a ser de fato uma"evangelização ética"? É aquilo que se convencionou chamar de "evangelização integral", ou seja, um compromisso permanente com o bem-estar da pessoa como um todo, não apenas na dimensão espiritual, mas também nos aspectos sociais. É esta compreensão abrangente da salvação que faz com que os cristãos e cristãs se mobilizem na luta por justiça social e contra toda forma de discriminação.

Evangelização integral é a que compreende a Missão de Deus no mundo e na história acontecendo na promoção da vida. E "para que haja vida, são necessários comunhão e reconciliação com Deus e o próximo, direito à terra, habitação, alimentação, valorização da família e dos marginalizados da família, saúde, educação, lazer, participação na vida comunitária, política, artística e preservação da

 natureza" ,  "humanização do trabalho, melhor distribuição da riqueza, organização e proteção do trabalhador, segurança, valorização, oportunidade para todos de salários e empregos", como nos diz o Plano para Vida e Missão da Igreja Metodista.

A Evangelização integral e "ética", é a melhor proposta de ética ligada à ecologia e a qualquer outra área da ação humana para orientar a participação humana na história e na ecologia. Até porque falarmos de evangelização ética e integral implica uma contribuição teológica para a construção de uma ética cristã protestante construída sobre pelo menos cinco fontes pelas quais podemos conhecer e perceber a revelação da vontade de Deus, a saber:

a) A Bíblia - a maior fonte de conhecimento e autoridade:  nossa única regra de fé e prática

b) A experiência pessoal com Deus - a leitura da Bíblia deve nos levar à experiência pessoal com Deus, ao mesmo tempo em que a experiência de fé leva o crente a uma outra leitura das Escrituras. Sentir a presença de Deus e estar em comunhão com ele nos livra de uma fé cognitiva/racionalista e nos proporciona conhecer a vontade divina e receber o poder para realizá-la.

c) A razão - o uso da razão significa aceitar uma das grandes dádivas de Deus. Deus espera que amemos, mas espera também que sejamos capazes de pensar, escolher, de sermos lógicos.

d) A tradição - Os ensinos da Igreja, como o Credo Apostólico e as decisões dos Concílios Gerais da Igreja, são parâmetros importantes para o conhecimento de Deus revelado nas Escrituras, pela experiência pessoal e pela razão.

e) A criação - Na criação está a expressão da presença, da sabedoria, do poder e do cuidado amoroso de Deus. Podemos conhecer também a vontade de Deus para a vida humana e de toda criação.

De modo que, concluindo, podemos dizer que a responsabilidade ecológica da Igreja é, de fato, sua participação na Missão de Deus com a prática de um evangelho integral.  Como mais uma vez nos ensina o inspirado documento para Vida e Missão: "A Missão de Deus no mundo é estabelecer o seu Reino. Participar da construção do Reino de Deus em nosso mundo, pelo Espírito Santo, constitui-se na tarefa evangelizante da Igreja" .  

 

Pr. Ronan Boechat de Amorim

 

Para saber mais

 O que é ecologia - Antônio Lago e José Augusto Pádua - Editora Brasiliense

Viver a Graça de Deus -  Walter Klaiber e Manfred Marquardt, Editeo/Editora Cedro

 

Paraíso Terrestre - saudade ou esperança? - Carlos Mesters, Editora Vozes.

 

Cânones da Igreja Metodista. Documento para a Vida e Missão da Igreja. São Paulo,

Editora Cedro


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