Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 13/09/2013

Afinal, somos todos diferentes. Ou não?

 Afinal, somos todos   diferentes. Ou não?

 Por Guga Dorea*

 Quando o Thiago havia acabado de nascer eu escrevi esse diálogo imaginário ao refletir sobre qual é o olhar que nós, pais, não deveríamos ter em relação à criança com a síndrome de Down ou outra deficiência qualquer.

 Hoje ele está com 13 anos, tem a sua própria personalidade e, obviamente, algumas dificuldades, como todos nós, aliás.

Tenho notado, entretanto, que o diálogo criado por mim, naquele rico período do nascimento de meu filho, continua de pé em se tratando da realidade que nos cerca até hoje. Então optei por rever o diálogo e compartilhar com todos que vivem o mesmo dilema ou que ainda não conseguiram superar preconceitos existentes dentro de nós mesmos.

Como deve ser a percepção de um bebê com a Síndrome de Down no momento em que ele veio ao mundo? Em um primeiro instante, pode até parecer irrelevante e mesmo sem sentido começarmos dessa forma um debate sobre a inclusão social nos dias de hoje, sobretudo porque quem discute e define quais são os melhores meios para atingir tal fim é o mundo adulto, supostamente consciente do que escolheu para os filhos em suas vidas cotidianas.

Mas como forma de exercitar o pensamento e a imaginação, insistirei nessa reviravolta propondo ao leitor que siga comigo em uma viagem por uma possível subjetividade e sensações de uma criança “down” em seu primeiro contato imagético com o mundo de fora. Essas poderiam ser as primeiras impressões dessa criança ao se ver conectada aos pais que a geraram. Começo aqui um exercício de pensamento ou, como queiram, um diálogo fictício, porém muito mais real do que podemos imaginar:

Bebê: Não estou compreendendo bem. As primeiras palavras que eu escutei são “que frustração, o filho dos meus sonhos, que tanto idealizei nesses noves meses de gestação, não veio?” Não veio? Então quem sou eu? O que tem de errado comigo?
Pais: Ainda não sabemos, mas o problema é que daqui para frente teremos que super protegê-lo desse mundo que não o entenderá. Mas antes teremos que ter força suficiente para aceitá-lo de fato.

B: Nossa, não me darão nenhuma chance? Ou será que eu terei que ser outra pessoa para ser aceito? Acho que é isso. Vocês já estão dizendo qual é o caminho certo a ser seguido. Senão, terei que ficar aqui escondidinho e no máximo terei a solidariedade dos outros. No máximo, eles e voes mesmos serão tolerantes com a minha possível demora em entender as coisas e me tratarão como um coitadinho que está se esforçando.

P: Nós seremos tolerantes sim, mas você terá que se superar e conseguir viver uma vida a mais normal possível.

B: Ah! Então para que eu seja aceito tenho que entrar no que vocês estão chamando de normalidade. Qual é ela e como eu devo fazer?

P: É isso mesmo. Em toda a história da humanidade sempre houve a sua normalidade. É a regra do jogo. Quem não aceita essas regras é visto como negativamente diferente.

B: Porque diferente? Diferente em relação a que e a quem?

P: O que sabemos é que você não é igual a nós. Você não faz, por exemplo, o que uma criança de doze anos deve e pode fazer. É por isso que nós, pais, estaremos sempre correndo atrás do tempo, criando expectativas e não poucas vezes nos frustrando com a seu desempenho. Você não tem o mesmo tempo, a mesma velocidade e inteligência das crianças normais. Então, quem quer ser incluído deve se apressar para entrar no jogo e, se possível, ganhá-lo.

B: Agora estou começando a entender o que vocês estão querendo dizer. Como vocês mesmo dizem, para que eu seja incluído tenho que ser o máximo possível igual a vocês. O difícil vai ser aprender a ser igual e não mais diferente de vocês.

P: O que mais poderia ser a inclusão social?

B: Só tenho uma perguntinha: vocês todos são iguais? Não há diferença alguma entre vocês?

P: Boa pergunta. É que nós crescemos aprendendo que existe essa separação rígida entre as pessoas. Aí veio você que está do outro lado desse binômio e nos deixou atordoados, sem chão e sem saber o que fazer. E quanto mais velho você for mais difícil vai ser. A escola vai dizer que você não acompanha. Muitos vão dizer que você aprenderá mais em uma escola só para você. Isso porque nessa escola saberão como lidar com o seu problema e você estará entre seus iguais.

B: Quer dizer então que eu sou diferente de vocês, mas tem os meus iguais. E eu só conseguirei ter eles como amigos. Então, nesse mundo que eu estou chegando cada pessoa só vive entre os seus iguais? Agora eu estou começando a entender o porque vocês, lá no fundo, se decepcionaram comigo desde começo e talvez nem vão me dar uma chance para que eu seja diferente de mim mesmo.Por isso, vocês já estão falando que terão que viver em função de minha proteção, pois me vêm como limitado e incapaz para enfrentar esse mundo que eu estou chegando. Vejo em vocês até uma pitada de vergonha inclusive com o meu rostinho.

P: Não é bem assim como você está dizendo. É que nós queremos e desejamos que você faça e aprenda a fazer tudo o que as crianças normais fazem e aprendem. Nosso medo é que você não avance e não mude, fique preso às suas raízes e não tenha uma vida normal.

B: Então só porque eu nasci com a síndrome de Down todo o meu destino está traçado. Serei incluído de verdade se deixar de ser diferente e me tornar um igual? Mas o que é ser igual? Não compreendi também o que é esse transformar que vocês estão falando. É me tornar um igual? Deixar de ser diferente? E vocês? São igualzinhos? Não tem nada que diferencie vocês? Se vocês já são normais e perfeitos, então não precisam mais mudar?

P: Mas entenda bem. Nós queremos o seu bem e, por isso, estamos assustados e inseguros porque teremos que estar sempre correndo atrás do tempo. Não podemos deixar que você escape do trilho.

B: Então estão dizendo que farão de tudo para que eu deixe de ser eu mesmo e me torne outro à imagem e semelhança do que vocês acham que é normal e correto? Que só eu tenho que superar meus limites a todo segundo de minha vida? Tenho que estar provando que sou igual a vocês?

Esse diálogo imaginário foi apenas uma estratégia para mostrar como é possível criar estereótipos mesmo que não haja intenção consciente para tal. Como é fácil alimentar as dicotomias normal/anormal; belo/feio; capaz/incapaz, e muitos outros estigmas, tendo como parâmetro um modelo ideal de sociedade pré-estabelecido, fortemente arraigado na sociedade ocidental.

Mas para quem não confunde integração com inclusão social, no entanto, ter uma criança com a síndrome de Down passa a ser um verdadeiro presente da natureza. Pelo menos em relação aos ”downs” essa mentalidade pessimista está se modificando bastante e felizmente para melhor. Por outro lado, ainda permanece forte a visão da síndrome como deficiência a ser superada ou mesmo doença a ser curada.

Dessa forma, há o risco dessa criança receber, pensando agora no filósofo Espinosa, que viveu entre os anos de 1632 e 1677, afetos tristes, ou melhor, ter maus encontros em seu caminho existencial. Partindo de um outro sentido, no entanto, quem acompanha o ritmo de uma criança com a síndrome, sem criar expectativas quanto a um suposto modelo a ser seguido, passa a ter lições maravilhosas de vida. Correr em demasia impede que a vida flua em nossos corpos. É ver a vida passar sem contemplá-la de fato, como já dizia filósofo pós-platônico chamado Plotino. É não perceber as transformações que ocorrem em nós, como diria também o pré-socrático Heráclito.

“Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. (…). Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio. (…). Aos que entram no mesmo rio afluem outras e outras águas; e os vapores exalam do úmido”.

Trata-se de não pensar mais a vida como um objetivo a ser atingido e viver o ritmo singular de cada um de nós. Não é mais pensar em obstáculos não atingidos e deixar que momentos aparentemente irrisórios e sem importância tenham algum efeito em nosso corpo e mente. Entre um ponto e outro existem infinitos outros que devem e podem ser vividos. Para muitos, entretanto, o importante na vida é acelerar os passos, tornar-se o mais competitivo possível e superar limites ininterruptamente, sem levar em consideração a existência do outro. Há aqueles que fazem isso sem notar, sem levar em conta que a vida foi ficando para trás e criando estigmas a todo instante, mesmo que inconscientemente

Como esse texto começou propondo uma viagem imaginária, termino ele com o pensamento vivo de nosso fictício, porém real, bebê:

- Eu tenho muito a ensinar para vocês. Tenho toda a minha cadência, meu ritmo, meus desejos, interesses, necessidades e dificuldades. Se vocês não me derem uma chance de mostrar a minha potência de vida e investir nela há grandes chances de minha existência se tornar muito triste, minha auto-estima pode cair muito e aí me tornarei mesmo um deficiente. Toda minha potência de vida será bloqueada. Aí vocês dirão que é a culpa é do defeito que vocês insistem em dizer que eu tenho. Eu tenho é uma suavidade própria que pode gerar em vocês novas formas de conceber a existência e as relações de afetos e desejos. Eu não sou o vazio, o nada. Também tenho minha potencialidade criativa que pode gerar afetos e sensações alegres no outro, em uma troca ou espécie de aliança entre diferenças. Afinal, somos todos diferentes. Ou não?

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Guga Dorea é jornalista, Doutor em Sociologia e colaborador da Inclusive. Atua hoje em dia como professor de cursos de pós-graduação em Educação Inclusiva e do curso de especialização em síndrome de Down, organizado pelo Centro de Estudos e Pesquisas Clínicas (CEPEC), além de pesquisador e articulista nas áreas social, educacional e inclusiva. É também integrante do Instituto Futuro Educação, uma entidade sem fins lucrativos que tem como forma de atuação projetar e propor cursos, seminários e oficinas que abrangem desde a filosofia e a sociologia da diferença até a educação democrática e inclusiva.  


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