Publicado por José Geraldo Magalhães em Geral - 16/10/2010

A toda tribo, povo, língua e nação o crescimento da Igreja através dos séculos

A igreja cristã nasceu com uma vocação para crescer e se tornar universal. Já havia algumas intimações dessa universalidade no Antigo Testamento (Sl 67.2; 117.1; Is 2.3; 42.6; 66.19; Am 9.12; Zc 2.11; 8.22s), mas essa ênfase se tornou explícita nos ensinos de Jesus Cristo e dos apóstolos. Ao confiar a “grande comissão” aos seus seguidores, Jesus foi muito claro: eles deveriam fazer discípulos de todas as nações (Mt 28.19), ir por todo o mundo e pregar o evangelho a toda criatura (Mc 16.15), pregar arrependimento para remissão de pecados a todas as nações (Lc 24.47), ser suas testemunhas em Jerusalém, na Judéia e Samaria, e até aos confins da terra (At 1.8). No livro de Atos e nas epístolas, os apóstolos e os discípulos se mostram zelosos no cumprimento desse mandado (At 8.4; Rm 15.19). E o livro do Apocalipse apresenta grandiosas visões dos redimidos que procedem de todas as tribos, povos, línguas e nações (Ap 5.9; 7.9; 14.6).

É verdade que, nos primeiros tempos, houve um sério obstáculo a ser transposto. Muitos cristãos judeus queriam que os conversos gentios praticassem a lei de Moisés, isto é, se tornassem prosélitos do judaísmo, para poderem se tornar cristãos. Somente crer em Cristo não era suficiente. O “concílio de Jerusalém”, descrito em Atos 15, resolveu o problema de maneira sábia e equilibrada, dizendo que os cristãos gentios não precisavam seguir a lei mosaica, mas apenas se abster de determinadas práticas, visando manter a comunhão com os seus irmãos judeus. Isso permitiu que o movimento cristão deixasse de ser uma simples seita dentro do judaísmo e abraçasse plenamente a sua vocação universal. Cada vez mais o evangelho, inicialmente restrito aos judeus, passou a ser pregado deliberadamente aos gentios, fato que ocorreu de maneira ampla, pela primeira vez, na cidade de Antioquia da Síria (At 11.19-21). A partir de então, esse processo se tornou irreversível.


Os primeiros séculos

Nos três primeiros séculos a Igreja experimentou uma notável expansão geográfica. As regiões atingidas até o final do primeiro século formavam um semicírculo em torno da extremidade oriental do mar Mediterrâneo, indo desde Cirene (Líbia), ao sul, até a Itália central, ao norte, e incluindo todas as regiões intermediárias – Egito, Palestina, Síria, Ásia Menor, Grécia e Macedônia. As maiores concentrações de comunidades cristãs estavam na Palestina e Síria e na chamada Ásia, o oeste da Ásia Menor, em torno da cidade de Éfeso. No segundo e no terceiro séculos, as novas regiões atingidas incluíam, no Oriente, a Mesopotâmia (Iraque), a Pérsia e a Armênia, e no, Ocidente, toda a Península Balcânica ao sul do rio Danúbio, a região ao sul do rio Reno (Checoslováquia, Iugoslávia, Albânia), toda a Península Itálica, partes da Alemanha, França, Espanha e Lusitânia (Portugal) e o sul da Britânia (a futura Inglaterra). No norte da África, um novo e florescente centro cristão foi a Numídia, atual Tunísia. É verdade que em muitos desses lugares a presença cristã era ainda pequena, mas crescia continuamente.

Dois fatos se destacam nesse período antigo. Essa foi a época das perseguições sofridas pela Igreja nas mãos do Império Romano. As perseguições não foram generalizadas nem contínuas, mas causaram consideráveis danos à Igreja em algumas de suas regiões mais prósperas, como a Ásia Menor, Itália, Egito e sul da Gália. Todavia, a repressão não teve o efeito esperado – quando cessava, o exemplo dos mártires e outros que sofreram por sua fé inspiravam os cristãos a um esforço renovado pela difusão da sua fé. Daí as célebres palavras do escritor Tertuliano (cerca do ano 200): “O sangue dos mártires é semente”. Ele também fez a seguinte afirmação dirigida aos pagãos: “Nós somos um grupo novo, mas já penetramos em todas as áreas da vida imperial – nas cidades, ilhas, vilas, mercados, e até mesmo no campo, nas tribos, no palácio, no senado e no tribunal. Somente lhes deixamos os seus templos” (Apologia 37). Outro dado importante é que, à exceção de Paulo, nenhum missionário se destacou nos três primeiros séculos da vida da Igreja. O cristianismo crescia espontaneamente por meio do testemunho de cristãos anônimos que, no seu dia-a-dia, compartilhavam informalmente a fé com seus parentes, amigos, vizinhos, conhecidos e colegas de trabalho.


A igreja imperial

Alguns fatos novos muito importantes aconteceram a partir do início do quarto século. Em primeiro lugar, houve a adesão do primeiro imperador romano à fé cristã, Constantino, com a conseqüente legalização do cristianismo e o fim das perseguições (ano 313). No final do mesmo século, outro imperador, Teodósio, oficializou a Igreja Católica, tornando-a a única religião admitida no império. Isso fez com que grandes levas de pagãos ingressassem na Igreja, nem sempre movidos pelas motivações mais corretas. O fato é que, no quarto e no quinto séculos, o cristianismo tornou-se a religião majoritária na parte sul do Império Romano. Com as migrações dos chamados povos bárbaros para dentro dos limites do império, estes foram progressivamente cristianizados, a começar dos visigodos. A primeira tribo teutônica a aceitar a fé católica, ou seja, trinitária, foi a dos francos, no final do quinto século.

O cristianismo sofreu um golpe terrível no sexto século com o advento do islamismo, que, em algumas regiões em torno do Mediterrâneo, deteve a marcha vitoriosa da Igreja. Importantes regiões e centros cristãos de grande influência foram perdidos definitivamente, como foi o caso da Síria, Palestina, Mesopotâmia, Egito, Líbia e Numídia (Cartago). Mais tarde, os turcos, também convertidos ao islamismo, haveriam de causar grandes danos à igreja grega ou oriental, com a progressiva absorção da Ásia Menor e de certas partes dos Bálcãs, até a conquista da magnífica cidade cristã de Constantinopla, em 1453. Outras regiões cristãs ocupadas pelos muçulmanos por longo tempo foram eventualmente reconquistadas pelos cristãos, notadamente a Península Ibérica. As Cruzadas, grandes campanhas militares promovidas pelos cristãos europeus com a finalidade de recuperar os lugares sagrados do cristianismo que haviam caído em mãos maometanas, fizeram muito mais mal do que bem, deixando ressentimentos que perduram até hoje. Alguém se referiu a elas como a mais trágica distorção das missões cristãs em toda a história da Igreja.

Em compensação, até o fim do primeiro milênio completou-se em grande parte a cristianização do norte e do leste da Europa (Ilhas Britânicas, Países Baixos, Escandinávia e nações eslavas, inclusive a Rússia). Com as perdas sofridas no Oriente Médio e no Norte da África, poderia parecer à primeira vista que o cristianismo se tornara uma religião exclusivamente européia. Porém, esse não foi o caso. Desde um período muito remoto, a fé cristã atingiu com maior ou menor intensidade vastas regiões da África ao sul do Saara, como o Sudão e a Etiópia, bem como importantes áreas do Oriente, como a Índia, a Mongólia e a China. Por outro lado, se não houve missionários de destaque além de Paulo nos primeiros séculos da Igreja, o mesmo não se pode dizer dos séculos posteriores. Até hoje servem de inspiração para muitos cristãos os exemplos de Ulfilas (missionário aos godos), Martinho de Tours (França), Patrício (Irlanda), Columba (Escócia), Agostinho de Cantuária (Inglaterra), Wilibrordo (Frísia), Bonifácio (Alemanha), Anscar (Escandinávia), Cirilo e Metódio (povos eslavos), e tantos outros.


O período moderno

Uma fase nova e dinâmica da expansão do cristianismo ocorreu nos séculos 15 e 16, com as grandes navegações e descobrimentos efetuados por diferentes nações européias. Inicialmente, quem tirou maior proveito desses desdobramentos foi a Igreja Católica, que conquistou vastas regiões para a sua fé nas Américas, na África e na Ásia. Neste último continente, tornaram-se lendários os nomes de Francisco Xavier (Índia e Japão), Mateus Ricci (China) e Roberto de Nóbili (Índia). Todavia, essa expansão da fé cristã teve os seus percalços, porque os missionários vinham na esteira dos poderosos, dos conquistadores. Um caso particularmente inquietante foi o da América Latina, em que o processo de conquista e colonização, abençoado pela Igreja, deixou um rastro de destruição entre as populações nativas. Somente se levantaram algumas poucas vozes de protesto, como foi o caso dos dominicanos Antonio de Montesinos, Francisco de Vitória, Antonio Valdivieso e especialmente Bartolomé de las Casas (1484-1566).

Depois de uma hesitação inicial, motivada por fatores conjunturais e teológicos, os protestantes também se envolveram gradativamente com missões estrangeiras, tendo se tornado tão ativos quanto os católicos. O auge das missões mundiais, principalmente no que diz respeito aos protestantes, foi o século 19, designado pelo historiador Kenneth Scott Latourette como “o grande século das missões”. Foi essa a primeira vez na longa história da Igreja que o cristianismo se fez presente em todas as regiões do mundo, ainda que algumas áreas remotas dessas regiões tenham continuado sem a presença do evangelho. Alguns nomes bem conhecidos de missionários dessa época são David Brainerd, William Carey, Adoniran Judson, Hudson Taylor e John Paton. Novamente, ao lado de esforços missionários cristãos sérios e bem-intencionados, tanto católicos e ortodoxos quanto protestantes, houve aspectos menos recomendáveis, como a associação entre as missões e o colonialismo, a excessiva identificação entre o cristianismo e a cultura ocidental, e a competição entre diferentes grupos cristãos.


Observações finais

O crescimento da Igreja pode ser encarado de diferentes perspectivas. De um lado, os cristãos têm demonstrado ao longo dos séculos a preocupação de expandir a sua fé através do mundo, atendendo ao imperativo de Cristo. Esse crescimento teve aspectos apreciáveis, à medida que a fé cristã veio enriquecer a vida de muitos povos, trazendo a indivíduos, famílias e sociedades dignidade, esperança e maneiras mais construtivas de encarar a vida. O crescimento da Igreja muitas vezes teve um efeito benéfico e civilizador, trazendo consigo avanço cultural, educação, elevação do nível de vida e promoção humana em diversas áreas. Por outro lado, como foi apontado, esse crescimento muitas vezes esteve associado a atitudes questionadas pela própria ética cristã, como a violência, a ganância, o espírito de superioridade e o desrespeito pela integridade humana.

Outro fator relevante está relacionado com uma palavra utilizada várias vezes neste artigo – cristianização. Nem sempre os povos alcançados foram realmente evangelizados de modo compassivo, respeitoso e profundo, e sim revestidos de um verniz de cristianismo, muitas vezes estimulando formas grosseiros de sincretismo religioso. É óbvio que o cristianismo desde o início transpôs barreiras culturais e nesse processo influenciou e sofreu influências. Isso tem a ver com o tema sempre tão atual da contextualização ou indigenização da fé. Ao expandir-se entre outras culturas, a Igreja tem a responsabilidade de servir as pessoas e identificar-se com elas em tudo aquilo que não seja claramente incompatível com os valores do evangelho.

Uma questão problemática é ilustrada pelos movimentos de “crescimento da Igreja”, que se preocupam em atrair grandes números de pessoas, muitas vezes sem se importarem com os métodos usados, caindo na falácia dos resultados rápidos, do uso de técnicas de marketing religioso, das estratégias pragmatistas, da rendição às expectativas de uma sociedade embriagada com a prosperidade e o sucesso. O crescimento a qualquer custo nunca deve ser um objetivo da Igreja. Cristo nunca exigiu que a sociedade inteira seja evangelizada ou esperou que todos se tornassem seus discípulos. O importante é que o testemunho de Cristo esteja presente entre todos o povos e que ele tenha seguidores, poucos ou muitos, em todas as culturas e grupos. Sempre que o cristianismo se torna majoritário em um dado povo, há uma tendência de declínio nos seus valores morais e espirituais.

O crescimento da igreja evangélica brasileira revelado pelo último censo, embora tenha trazido benefícios incalculáveis para muitas vidas e produza euforia em muitos corações, ainda está para mostrar os seus melhores frutos. O divisionismo e a proliferação de igrejas, as lideranças personalistas e autoritárias, o ufanismo triunfalista e alienante, a importação de formas esdrúxulas de teologia e culto, a atuação decepcionante de políticos evangélicos, a falta de responsabilidade social e cívica – todos esses obstáculos precisam ser superados para que possamos verdadeiramente nos orgulhar dos índices de crescimento das igrejas evangélicas do Brasil e para que estas sejam o sal e a luz de Cristo em nossa sociedade. Os ganhos têm sido consideráveis, e por isso somos gratos a Deus, mas a tarefa permanece inacabada.


Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil.


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